Sobre vilões e heróis

Domingos Sávio Calixto

Com o declínio do império romano nos séculos  V e VI ocorreu uma espécie de “vácuo de autoridade” sobre as vastas e distantes propriedades “conquistadas” pela elite romana, de tal sorte que ela (aquela “elite”) entendeu prudente administrá-las (suas propriedades) diretamente, e para lá foram eles construir seus castelos.

Esse retorno dos senhores romanos às suas propriedades gerou a formação de verdadeiras “vilas romanas”, o que mais tarde acabou por se consolidar nos famosos feudos, ou seja, iniciou-se uma ruralização de serviços e nova modalidade de exploração da mão de obra que acabou por ser (re)conhecida historicamente como feudalismo.

Em poucas palavras o feudalismo consistia numa modalidade de exploração da força de trabalho rural fulcrada na posse da terra, em que o proprietário (suserano) cedia a posse dela ao explorador rural (vassalos), mediante um ajuste no qual estava vinculado transferência de metade dos lucros em compromisso perpétuo, bem como a devida fidelidade protetiva eterna.

Nesses ajustes tudo ia se capilarizando e se desdobrando em novas possibilidades de manejo da posse da terra e exploração de serviços, de tal sorte que os senhores feudais sempre lucravam sem nenhuma saudade do velho império romano, além do que cada senhor romano era praticamente um imperador em seu castelo feudal.

Muito embora os servos dos feudos – vinculados à terra e aos compromissos firmados com o senhor feudal – se mostrassem em posição exploratória claramente desvantajosa, quase sempre no limite da penúria, havia entre eles uma categoria nem tão comprometida, ainda que um igual penúria: os vilões.

Os vilões eram camponeses pobres que sequer moravam dentro do feudo, mas em vilas e comunidades pobres ao redor e que ali podiam residir desde que, evidentemente, pagassem impostos ao senhor feudal, bem como dedicassem parte do seu trabalho para o próprio senhor do castelo, claro. 

Para estabelecer impostos dos vilões, o senhor feudal providenciava um censo estimativo sobre o qual estruturava a taxa a ser cobrada daquela pequena povoação. Como a vila e os vilões estavam à margem do feudo, o respectivo controle parecia simples, mas gerava significativos incômodos ao senhor feudal exatamente pela inconstância com a qual se apresentavam.

Essa inconstância foi mais que suficiente para gerar entre os senhores feudais certa “antipatia” por aqueles marginais, e essa antipatia não teve dificuldade alguma em se materializar em atos de violência.

Assim, desde então o termo “vilão” ganhou riqueza semântica e vasta significação pejorativa, enquanto os próprios vilões permanecem pobres e marginalizados, como se constata: as favelas estão repletas de “vilões”. Falar em vilões na modernidade significa estabelecer uma linha moral que divide o mundo em dois: os heróis (nós) e os vilões (eles).

Categoricamente existe uma comunidade rural tratada na maior possibilidade persecutória possível que o termo “vilão” pode oferecer: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra  (MST). O MST vem mantendo o rótulo de vilões por excelência graças ao incansável poder midiático de “grileiros” e latifundiários irregulares e endividados. Esse poder de propaganda altamente sofisticado atribui ao MST práticas de violência rural, roubo, esbulho e até estupro.

É óbvio que tais práticas não existem, sequer podem ser noticiadas por um veículo de comunicação minimamente sério, porque são falsidades oriundas de casos isolados que fraudulentamente são associadas ao movimento. O MST não atua desta forma. O papel do MST e suas práticas sociais são reconhecidos e premiados mundialmente, exceto pela “elite” feudal tupiniquim. O que o MST faz é abastecer os brasileiros com 70% da comida que se tem na mesa. O MST não opera no mercado de “commodities” para atender ao estrangeiro, mediante o maior lucro possível.

Tomando o episódio de Chico Mendes como referência, basta abrir o santo oráculo Google e digitar “lideranças rurais mortas” para se conferir – com assombro – como a “elite” rural desse país mata pessoas, mata índios, mata freiras e mata quem quer que se coloque em seu caminho. Não é o MST quem pratica crimes ambientais, ateia fogo em reservas naturais e destrói o meio ambiente (crimes contra a humanidade) para obter pasto (...).

Para contextualizar, dois exemplos: 1. Uma aeronave clandestina (?) pulverizou veneno sobre assentamento do MST em Nova Santa Rita-RS, dia 17 deste mês de março. Diversas pessoas foram socorridas junto ao posto de saúde local por conta da intoxicação. O MST possui aeronave? 

  1. 2. Com tantas pessoas exiladas, mais uma foi obrigada a deixar o país. Trata-se da pesquisadora/professora Larissa Bombardi. Ela foi forçada a fugir do país por conta de ameaças em face de suas valorosas pesquisas sobre a “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e sua Conexão com a União Europeia”. O medo fez com que ela buscasse segurança no estrangeiro. Medo de quem? Do MST? 

Francamente, parece que os conceitos de herói e vilão devem ser urgentemente revistos.

 

 

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