Sobre a estranheza do latrocínio

CREPÚSCULO DA LEI – Ano V – CXXIII

Domingos Sávio Calixto

Os alunos das aulas de Direito Penal ficam boquiabertos quando lhes é dito que o crime de latrocínio não é crime contra a vida e nem vai a júri popular. “Como não, afinal é um delito onde o autor mata dolosamente a vítima para roubá-la?”, perguntam estupefatos. 

E ainda acrescentam, atordoados: “Mas a vida não é o bem jurídico maior?”

(...) 

Para se evitar que angústia e melancolia prévias se apoderem de suas pobres mentes acadêmicas ainda catecúmenas, é preciso esclarecer-lhes algumas proposições dogmáticas pertinentes ao conflito entre bens jurídicos, vida e patrimônio.

A primeira questão a ser esclarecida é que o Código Penal brasileiro se baseia na “intenção” principal do autor para ajustar sua conduta a um artigo. Nesse sentido, o autor de latrocínio estaria com sua intenção principal voltada para o patrimônio da vítima. Portanto, não seria um crime contra a vida, diretamente.

Outra questão é que o código foi produzido por sistema capitalista.

Ora, a palavra latrocínio vem do romano arcaico “latricinium”, envolvendo a combinação entre “latro” (ladrão) e “caedere” (golpear). Desta forma, latrocínio é a prática do assaltante que golpeia.

Acrescentando, patrimônio também vem do romano/latim no ajuste entre as palavras “pater” (pai) e “omnium” (tudo). Desta forma, patrimônio seria tudo aquilo que “pertence ao pai”.

Sem embargo, eis a estranheza, os crimes contra o patrimônio não são considerados “crimes contra a pessoa” pelo código penal. Eles estão situados (topologia) em outro título, aliás um título próprio só para eles: Dos crimes contra o Patrimônio. Coisas do capitalismo.

Somente um regime capitalista para estabelecer um título específico para o “patrimônio”, distanciado dos crimes contra a pessoa. Durma-se com um barulho desses.

Claro que o capitalismo não iria permitir que o latrocínio fosse a júri popular, deixando que golpes contra “sua divindade, o patrimônio” ficassem à mercê de um conselho de sentença pouco afeto às premissas da segurança e da ordem pública prometidas pela lei penal.

 A pena para o latrocínio é de 20 a 30 anos de reclusão, e multa, conforme artigo 157, parágrafo 3º., II do código penal. É a maior do digesto punitivo.

Parece que o legislador sentiu mais confiança no juiz singular para julgar esse crime. Afinal, trata-se do patrimônio (!) e, nesse caso, pesou mais que a vida.

Trata-se de um disparate de tal ordem que a própria consumação – summatum opus – do latrocínio é intrigante. Ou seja, o crime se dá por realizado quando a vítima morre. Isso mesmo, ainda que o autor não consiga a subtração do objeto – alvo de sua intenção – o crime estará consumado.

Ora (II), se a morte da vítima é a referência para a realização do crime, mais uma vez se entende o propósito pouco principiológico do legislador.

A vida só é o bem maior no Brasil quando extremistas de direita causam alvoroço para criticarem o aborto legal. No resto, deixam que as forças policiais “resolvam”.

Difícil dar aula de Direito Penal neste país. Os acadêmicos precisam ter muita paciência.

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