Sem disfarce

 

SILVIA ZACLIS 

Sem disfarce 

 

Consultei Carochinha, o porquinho Cícero, o marquês de Sabugosa, Rapunzel, mandei recado, fui visitar, mas não teve jeito.

A situação é tão grave que eles se negaram a participar da crônica. Não querem ser acusados de ajudar a dourar a pílula. Nem a Emília, nem o Burro Falante. Estão em casa, quietos, numa espécie de luto de pensamentos.

Se eu mandar uma carta, algo inédito entre nós, quem sabe eles reconsiderem…

“Caros amigos, venho por meio desta reiterar meu pedido de colaboração nessa tarefa que tem consumido meus dias. Quero comentar o que anda acontecendo neste nosso reino caótico, e apenas com sua valiosa participação poderei elaborar ideias que não sejam apenas um derramar de lágrimas e previsões catastróficas. Preciso tornar minha reflexão mais leve, até divertida, e vocês são especialistas nessa arte.

Aguardo seu retorno; recebam meu respeito e consideração”.

A resposta veio rápida:

“Cara amiga, sentimos muito não atender a sua solicitação. Seria uma irresponsabilidade de nossa parte transformar qualquer aspecto do Brasil de hoje em narrativa palatável, divertida. Aceitamos que a moral dos nossos contos possa ser tachada de escapismo, afinal as fábulas fazem bem para a alma… mas, atenção, tudo se passa no reino da Carochinha.  No mundo dito real,  desprezamos qualquer tentativa de disfarçar a falta de humanidade desse governo e do grupo que o apoia.

Com certeza haverá outras oportunidades de colaboração; mas não agora. Esperamos que faça o seu melhor. Assinam todos os interessados”.

Então eis-me aqui tentando concatenar algumas linhas que falem do desprezo pela vida, do descaso ao patrimônio do país, dos crimes contra os  índios que eram os donos da bagaça e morreram e continuam morrendo de nossas doenças e por nossas armas, a desfaçatez dos que lucram com a pandemia, as mentiras deslavadas que se engolem todos os dias. A indecência dos conchavos políticos, alienados do mundo que está  desabando à sua volta. A indigência de ideias, o cinismo das opiniões. Uma polarização que escancara nossa pobreza política, que deixa o povo à mercê das mesmas pessoas, uma e outra vez, criando um círculo vicioso que se retroalimenta e se eterniza…

Parei por aqui. Insatisfeita,  resolvi rabiscar tudo (não digo deletar,  cansada que estou também dos estartares, linkares, uploudares, chateares da vida).

Amanhã eu tento outra vez. Quem sabe mando uma carta para o pessoal do Looney Tunes…

 

 

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