Samonte acumula fábricas de fogos de artifício e tragédias

Moradores convivem com graves acidentes e mortes há mais de 40 anos; quatro pessoas morreram nos últimos dois meses

 

Bruno Bueno

Nove horas da manhã do dia 12 de dezembro de 1979. Moradores de Santo Antônio do Monte se preparam para começar as tarefas do dia quando escutam um estrondo. O que muitos não sabiam é que aquele som ensurdecedor ficaria marcado no coração de muitos santo-antonienses pelo resto de suas vidas.

  Tratava-se de uma explosão na fábrica de fogos de artifício Inbrasfogos, uma das mais tradicionais do município.  Treze pessoas morreram e 24 ficaram feridas. O acidente é, até hoje, o maior registrado em fábricas de Minas Gerais. Quarenta e três anos depois, os mesmos moradores se acostumaram com acidentes e vítimas fatais decorrentes de explosões nas fábricas do município. Segundo levantamento do jornal O Tempo, entre 1999 e 2015, 17 pessoas morreram em 85 acidentes registrados em Samonte. 

A situação permanece a mesma nos dias atuais. Somente neste ano, quatro pessoas morreram em explosões nas fábricas de artifício. As duas últimas foram contabilizadas na manhã de ontem, em um grave acidente na área rural do município. 

Quatro mortes em 2022

Socorristas do Samu foram chamados ainda no início da manhã, por volta das 08h30, para atendimento de uma explosão em uma fábrica de fogos de artifício, na área rural. Duas pessoas foram encontradas sem vida. As polícias Militar e Civil foram acionadas. 

É o segundo acidente com vítimas fatais em menos de dois meses. Duas pessoas também morreram na explosão de outra fábrica na cidade. O caso aconteceu no dia 10 de junho próximo da MG-164, quando outras três pessoas ficaram feridas.

Sindicatos

O Agora conversou com o presidente do Sindicato das Indústrias de Explosivos no Estado de Minas Gerais (Sindiemg), Magnaldo Geraldo Filho. Ele informou que a fábrica onde a explosão foi registrada não faz parte do grupo de associados.

— Recebemos com muita tristeza essa notícia. Não temos muitas informações sobre o ocorrido porque a empresa não é sindicalizada. Infelizmente, às vezes, não sai na mídia, mas nossas empresas estão sempre fazendo cursos de segurança. Todos os acidentes que aconteceram partiram de empresas que não eram sindicalizadas — garante.

A reportagem entrou em contato com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Fábricas de Fogos de Artifício (Sindifogos), Roberto Gonçalves. Em nota, o representante disse que, como não estava na cidade, ainda analisa o caso e prefere não se manifestar.

Por fim, o Agora também procurou a empresa Fogos São Miguel, onde o acidente foi registrado. A reportagem não obteve resposta até o fechamento desta página, por volta das 18h.

Grave acidente em 2021

Acidentes dessa natureza têm sido frequentes em Samonte nos últimos anos. Em novembro de 2021, um galpão de fogos explodiu no bairro Mangabeiras. A principal vítima ficou com 90% do corpo queimado e precisou ser transferida às pressas de Divinópolis para Montes Claros, na região Norte de Minas Gerais.

Outras duas vítimas ficaram gravemente feridas. Uma delas foi encontrada inconsciente, trancada no banheiro, respirando com dificuldade e com queimaduras nas vias áreas e em outros locais do corpo. A terceira vítima teve 50% do corpo queimado e precisou ser encaminhada para o hospital João XXIII, em Belo Horizonte. 

Adolescente morto em 2020  

A cidade já havia sido palco de outra tragédia um ano antes. Em dezembro de 2020, um adolescente de apenas 15 anos morreu após ser atingido por uma explosão de fogos de artifício na Travessa Ferreira, bairro Dom Bosco. 

Segundo informações do Samu, o menino trabalhava em uma fábrica quando se acidentou. Ao chegar ao local, a equipe de socorristas da cidade fez o atendimento da vítima. Ele estava com rebaixamento do nível de consciência e fraturas graves nas pernas e com queimaduras em todo o corpo.

O adolescente recebeu os primeiros cuidados e foi encaminhado para a Santa Casa do Município. Após diversas tentativas dos médicos e socorristas, o menino não resistiu aos ferimentos e morreu na Sala Vermelha do hospital.

Tragédias em 2019 e 2018

Outro grave acidente foi registrado em 2019. Uma explosão em outra  fábrica deixou um homem morto e outro ferido em novembro daquele ano. 

Um homem de 41 anos já estava carbonizado. O ferido, de 25 anos, consciente e com queimaduras de 1° e 2° grau em cerca de 38% do corpo. Ele foi encaminhado para a UPA de Santo Antônio do Monte e levado para a Sala Vermelha do Complexo de Saúde São João de Deus (CSSJD), em Divinópolis.

A tragédia abalou os moradores do município que ainda tentavam se recuperar de outro acidente. Quinze meses antes, em junho de 2018, uma pessoa morreu em uma explosão na fábrica de fogos de artifício São Miguel, na comunidade do Fundão. Outra teve ferimentos leves causados por estilhaços.

O homem que morreu tinha 51 anos, de acordo com o Samu. A vítima estava em um barracão de manuseio de pólvora branca quando ocorreu a explosão. Nesta parte do processo de fabricação, o trabalhador executa o serviço sozinho no local.

Motivos

Os santo-antonienses já estão acostumados com as tragédias que acontecem ano após ano. A empresária C.A.A., que prefere não se identificar, elenca os motivos que podem explicar a grande incidência de acidentes em fábricas de fogos de artifício na cidade.

— Existem empresas que realmente investem em segurança, mas outras deixam a desejar. A falta de treinamentos, o funcionário que não é adequado para o setor que trabalha. Matéria-prima de baixa qualidade, a questão da energia estática, falta de organização e outros fatores — pontua.

De acordo com a moradora, identificar a principal causa do acidente é, na maioria das vezes, muito difícil. 

— Não tem como saber o que houve lá dentro. É uma explosão muito forte, quase sempre com vítima fatal e com susto, já que explosão pode arremessar estilhaços e passar para outros pavilhões — ressalta.

Lembranças

A santo-antoniense relembra com emoção um acidente que lhe marcou: o de um funcionário experiente, encarregado do setor de cores, um dos mais perigosos de uma fábrica. Orientado pelo técnico de segurança sobre o procedimento acerca de um material, o homem se tornou mais uma vítima fatal. 

— O funcionário não cumpriu as orientações e fez do jeito dele, mesmo com duas funcionárias que trabalhavam no local gritarem com ele pra não fazer. E deu errado. Teve uma pequena explosão, ele se machucou muito e veio a óbito. Mas ainda com vida ele repetia: como eu fiz isso? Era uma pessoa com tanta experiência — relembra.

As memórias de outros acidentes também fazem parte da vida da empresária. 

— O pessoal sai correndo rumo à portaria. Tem muito choro. É um descontrole total. Muita gente passa mal. É terrível. Mesmo sendo em outra empresa, a reação dos funcionários é praticamente a mesma. Eles precisam ser liberados pra ir pra casa ou até mesmo para a UPA — relatou.

Legislação

A lei que autoriza a fabricação de artigos pirotécnicos no Brasil está regulamentada por meio do Decreto nº 4.238, de 8 de abril de 1942. O texto foi assinado pelo presidente da época, Getúlio Vargas. 

Vereadores da capital mineira já se mobilizam para impedir a utilização do artefato. O Projeto de Lei 079/2021 tem, segundo os parlamentares, o objetivo de proteger animais, pessoas com deficiência e recém-nascidos. O texto está em tramitação.

O Senado Federal, por meio do PL 05/2022, também segue a mesma linha. A proposta de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) não proíbe a utilização de fogos visuais, mas veda a fabricação, o comércio, o transporte e o manuseio dos fogos de artifício e de outros artefatos pirotécnicos.

Samonte

Polo da produção de fogos de artifício, a cidade do Centro-Oeste perde apenas para a China no aspecto mundial. 70 empresas deste ramo atuam na cidade e empregam, direta e indiretamente, quase 15 mil pessoas na região. Para se ter uma ideia do tamanho da empregabilidade, o município tem 28.427 habitantes de acordo com o último Censo.

Trinta mil toneladas de fogos de artifício são produzidas todos os anos. A exportação ocorre principalmente para Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Em 2020, as fábricas ficaram fechadas por quatro meses. No ano passado, segundo levantamento do sindicato responsável, o setor registrou um crescimento de 60%.

O grande número de fábricas acompanha o número de tragédias no município: a cidade dos fogos de artifício está de luto mais uma vez. 

 

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