Que Brasil é esse?

Um manifesto a quem ainda não se convenceu da necessidade de ir às ruas no próximo dia 12 de setembro

QUE BRASIL É ESSE?

 

 

Por Márcio Almeida

Setembro de 2021 revelou que há dois tipos de brasileiros habitando o território nacional. Um deles foi às ruas no último dia 7 em apoio ao governo de Jair Bolsonaro. No próximo dia 12 deverão sair de casa os que se opõem à gestão do presidente da República. Pode parecer, à primeira vista, que a diferença entre apoiadores e críticos se encontra no plano ideológico. Seria como uma partida de futebol que tem, de um lado, gente querendo vestir meninos de azul e meninas de rosa e, de outro, defensores de políticas identitárias e novos arranjos familiares. Traduzida nos termos da crônica política, essa divisão apresentaria algo como a direita conservadora em um polo e os progressistas de esquerda no outro. Mas não é isso, embora possa parecer, que diferencia os dois lados. Afinal, não é só a esquerda que se opõe hoje a Bolsonaro. Se há eleitores da direita entre seus aliados, também os há entre aqueles que lhe fazem oposição e que são, a propósito, os organizadores da manifestação marcada para 12 de setembro.

A diferença entre os lados e isso ficou claro nos recentes posicionamentos divergentes de entidades do  empresariado e do agronegócio está em outro plano. Ela se encontra na leitura do país feita por cada um dos lados. Quem foi às ruas no feriado em apoio a Bolsonaro vive em uma espécie de Brasil europeu, um país viável onde, apesar de algumas dificuldades administráveis como a pandemia de Covid-19, o maior problema governamental é uma dupla de ministros do STF que tenta impedir o trabalho do presidente, um mandatário íntegro que defende a família e os bons costumes da ameaça comunista que ronda o mundo e dos "petralhas" que assaltaram o país por mais de uma década. Os que vão sair em protesto no dia 12 vivem, por sua vez, em um outro Brasil. Que país é este?

Este é um país penalizado por sucessivos aumentos nos preços dos derivados de petróleo. Eles foramautorizados por Joaquim Silva e Luna, o general que Bolsonaro nomeou para "sanear" a direção da Petrobras. Neste país, só em 2021, a estatal conduzida por Silva e Luna já reajustou a gasolina em 51%, enquanto o diesel e o gás de cozinha foram reajustados em 38%. Entre um aumento e outro, opresidente vem dizendo a apoiadores que a responsabilidade pela escalada recorde dos preços é toda da política de alíquotas do ICMS praticada pelos governadores. (Não admira que nenhum dos governantes estaduais tenha estado a seu lado nas manifestações do feriado).

Este é um país pressionado pela crise hídrica. No dia seguinte ao feriado da Independência, reservatórios do Sudeste e do Centro-Oeste estavam, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico, com nível médio de água abaixo de 20%, o que configura uma crise energética que já leva a um aumento médio nas tarifas de 6,78%, trazendo impacto sobre a inflação esperada para setembro, que deve elevar-se, pelas contas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 0,6% para 0,9%. Essa mesma crise motivou o racionamento do consumo, camuflado em um "Programa de Incentivo à Redução Voluntária", e levou especialistas a afirmar que o governo agiu tarde na estratégia de acionar as termelétricas.

Este é um país ameaçado pela ruína econômica. Neste país, um grupo cada vez maior de especialistasacredita que a mistura explosiva de inflação que no acumulado de 12 meses caminha para alcançar dois dígitos com os impactos da crise hídrica e a queda de 0,1% do PIB no segundo trimestre traz risco significativo de estagflação, fenômeno que mistura fraqueza econômica e preços em alta. Neste país, no qual o consumo das famílias ficou estagnado no segundo trimestre em relação ao anterior, tornando mais amplo o espectro da fome, o rendimento real dos trabalhadores caiu 3%. Mas há gente em situação ainda pior, já que o número de desempregados segue firme na casa dos 14 milhões, sem que o governo faça mais do que culpar o fechamento de portas napandemia pela situação.

Este é um país derrubado pela falta de lógica dos gastos públicos. Neste país, que o presidente definiu como “quebrado" em razão de gastos com o enfrentamento da Covid-19, em maio do ano passado, já com o estado de calamidade decretado na economia, Bolsonaro concedeu um reajuste salarial a bombeiros e policiais civis e militares do Distrito Federal, com impacto anual de R$505 milhões sobre a despesa. Neste mesmo país, em plena crise financeira decorrente da crise sanitária, o presidente ampliou de R$106 bilhões para R$110 bilhões o orçamento militar da defesa e, como se não fosse o bastante para uma situação de "quebradeira", renunciou a receitas ao zerar a tarifa de importação de armas fogo (medida anulada pelo STF) e reduzir as de videogames e brinquedos, como se esses itensconstituíssem prioridade em um momento no qual falta dinheiro a muitos cidadãos e cidadãs para comprar carne, ovo e outros gêneros de primeira necessidade.

Este é um país enganado por promessas econômicas. Bolsonaro prometeu mas não cumpriu até agora, a menos de um ano e meio do fim de seu mandato, uma redução (via desoneração da folha salarial) dos tributos pagos pelo empresariado, uma correção na tabela do Imposto de Renda, inclusive ampliando a faixa de contribuintes isentos, e uma redução nas alíquotas do IPI para eletrodomésticos da linha branca, como fogões e geladeiras. Tais promessas, entre outras, ao serem engavetadas deixaram no ar duas alternativas de interpretação: Bolsonaro não quis cumprir o que prometeu, o que é muito ruim, ou não soube avaliar a viabilidade econômica do que havia prometido, o que é ainda pior.

Este é, sem dúvida, um país acossado por ativismo jurídico. Todos estão cientes de que o STF tem andado às vezes na fronteira da ética e da legalidade e que, segundo alguns intérpretes, não raro a ultrapassa. Foi o que se deu na ocasião em que a corte decidiu invalidar uma delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro e agora presidiário Sérgio Cabral, que lançara sobre o ministro Dias Toffoli a acusação de vender sentenças em julgamentos feitos no Tribunal Superior Eleitoral(TSE). Em vez de determinar que se investigassem as denúncias contra Toffoli, conforme solicitado pela Polícia Federal (PF), seu colega Edson Fachin, com a anuência da maioria dos ministros do STF, optou por arquivar o caso. Entre outras ações no mínimo duvidosas, também houve a ocasião em que o plenário proibiu o Tribunal de Contas da União (TCU) de investigar benefícios concedidos pela empresa Itaipu a membros da corte ou a ocasião em que estes mesmos membros autorizaram, sem consultar a Procuradoria Geral da República (PGR), como muitos juristas entendiam necessário, uma ação policial contra o então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, investigado sob a suspeitade facilitar a atuação de desmatadores ilegais. A PGRtambém foi ignorada no inquérito que apura a disseminação de fake news no país, o que trouxe um caráter polêmico à investigação determinada pelo STF, que foi um dos alvos das divulgações e optou — na estranha condição de quem é ao mesmo tempo vítima e investigador — por determinar que as investigações corram em sigilo.

Mas este é também um país que não se permite ser enganado, pois sabe que essas e outras condutas polêmicas do STF passam muito longe de explicar osfracassos econômico, logístico, sanitário, educacional e ambiental do governo Bolsonaro. De fato, para tornar evidente esses fiascos não é necessário considerar a crise institucional que o presidente desencadeou ao discordar de modo desequilibrado de decisões dos ministros do STF. Do mesmo modo, não é preciso, para explicar tais fracassos, considerar aspectos políticos e éticos da atuação do presidente, como a imoral anistia dada por ele a desmatadores, a suspeita de que praticou indignas "rachadinhas" de salários de assessores enquanto parlamentar e a de que mantém uma equipe suspeita de participar de um esquema de superfaturamento de vacinas contra a Covid-19, assim como não é preciso levar em conta, para fechar esse diagnóstico de múltiplos fiascos, sua proximidade com milicianos que a justiça considerou assassinos, um dos quais tratava por herói, suas acusações sem provas ao sistema de voto eletrônico, que põem mais lenha na fogueira de instabilidade que afasta investidores, sua gestão da pandemia cada vez mais próxima de ser considerada criminosa pela CPI que a investiga no Congresso e outras "jabuticabas" típicas, como gosta de dizer o vice-presidente Hamilton Mourão. Nada disso, que é muito grave, precisa entrar na conta da falência governamental que vai tornando inviável este país. Portanto, antes de ser moral e política, ou mesmo ideológica, e muito antes de ser algo ligado à tumultuada relação entre o presidente e o STF, a discordância entre partidários e críticos do atual governo diz respeito às condições mínimas de sobrevivência do povo sob a gestão de Bolsonaro.

Não é por acaso que pessoas bastante diferentes entre si anunciaram presença nas manifestações contra o governo agendadas para 12 de setembro. Lá estarão, como a mídia anunciou, conservadores e progressistas, liberais e socialistas, trabalhadores e empresários: todos, enfim, que precisam investir e produzir, trabalhar e morar, vestir e comer, todos os que moram no Brasil latino-americano e não no Brasil europeu onde habitam os bolsonaristas que no dia 7 foram às ruas elogiar o governo do Mito. Esses brasileiros latino-americanos, ao contrário de seus compatriotas de tipo europeu, sabem que a atual situação do país não resulta de uma dificuldade conjuntural e sim de um projeto político definido e implementado de modo consciente e calculado pelo presidente da República. Sabem, portanto, que, nesta circunstância, um novo rumo para o país só virá deum novo governo. Às ruas, brasileiros!

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