Pernilongo-chefe

Augusto Fidelis
Quando Deus fez o mundo, criou também tudo o que nele existe, inclusive o pernilongo. Aliás, um não, dois: macho e fêmea os fez. Porém, utilizou-se da democracia, já reinante naquela época. Chamou Adão e Eva para opinarem sobre a missão de cada bicho na face da Terra, à medida que os colocava em circulação.
Na oportunidade, Eva estava bastante atordoada com a informação de que seria ela a mãe de toda a humanidade. “Como será dar a luz a tantos filhos, para povoar o mundo?” – perguntava. Adão, no entanto, já sabia como isso seria feito. Por isso, em vez de prestar atenção no que dizia ao Senhor, preocupava-se muito mais com o que deveria fazer para apanhar aquela maçã vermelhinha, na árvore da vida, a qual enchia sua boca d’água.
Em voz alta, com as palavras bem espevitadas, prosseguia o Senhor: “Este inseto, juntamente com sua companheira, ao qual encaixo na família dos Culicidae, é hematófago. Sua missão no mundo será a de azucrinar, aporrinhar, tirar o ser humano do sério, bem como as suas noites de sono. Será xingado com nomes feios e combatido com veemência, porém, em vão. Concordam, meus filhos?”
Eva olhou para o casal de pernilongos e teve dúvidas se seria tudo isso mesmo que o Senhor sentenciava. Sua preocupação, naquele momento, não era saber o que os outros animais tinham por missão, mas a sua missão. Daí, perguntou para o companheiro: “Adão, veja essas marmotinhas. Bichinhos raquíticos desse jeito, perna seca, esqueléticos, frágeis, você acha que seriam capazes de tirar a noite de sono de alguém?”
Adão também tinha suas preocupações: comer maçãs. Voado, como sempre, respondeu: Quer saber de uma coisa? Eu acho que o Senhor está querendo é nos assustar. Vamos concordar com tudo o que ele disser, para acabarmos logo com esse negócio de missão dos bichos.” Ajoelharam-se diante do Altíssimo e disseram: “Concordamos, Senhor”. A serpente, toda maliciosa, dirigiu-se imediatamente ao casal e elogiou: “Parabéns, meus amores!”
Devido a esse vacilo dos nossos pais, os descendentes de Adão e Eva e a descendência dos Culicidae se digladiam a milhares de anos. Em épocas anteriores, os Culicidae sempre davam uma trégua na época do frio. Neste ano, porém, os combates se mantêm intensos. Nesta noite, por exemplo, eu tive de me levantar duas vezes para procurar o salafrário, que não consegui encontrar.
No entanto, num dos momentos em que trocávamos tapas e picadas, o Culex me transmitiu o recado do pernilongo-chefe: “Preparem-se, divinopolitanos: assim que o calor e as chuvas chegarem, o bicho vai pegar. Tenho dito!”