Peça de Sartre reabre em alto estilo a temporada cultural em Divinópolis

Leia a resenha exclusiva do Agora, que conferiu a estreia do espetáculo do Grupo Baal

Márcio Almeida Jr

Com uma inteligente releitura de “Entre quatro paredes”, que está entre as peças mais celebradas do escritor francês Jean Paul Sartre (1905-1980) e um elenco bem afinado, o grupo Baal de Teatro, sob a direção de Valério Peguini, reabriu a temporada de espetáculos presenciais em Divinópolis após o longo intervalo imposto pela pandemia de covid-19. Encenada nas noites de sábado e domingo passados no Nosso Espaço de Arte, no bairro Bom Pastor, sempre com ótimo público, a peça tanto constitui um feito artístico, pela qualidade do trabalho, quanto pode ser vista como o marco inicial de uma retomada segura das atividades culturais presenciais no município, incluindo a observância de todos os procedimentos e cuidados preceituados pela Vigilância Sanitária.

A peça

Escrita em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, “Entre quatro paredes” (“Hui clos”, no original em francês) foi concebida por Sartre em função das dificuldades de encenação da época. A peça, em um ato, tem um elenco de apenas três personagens que interagem em um único espaço. A aparente simplicidade de estrutura esconde uma das mais ricas contribuições do teatro contemporâneo à discussão de temas como a consciência e o julgamento moral e a presença do outro na construção da autoimagem que cada pessoa tem de si mesma. Na história se enfrentam Garcin (Paulo Marotta), um escritor covarde que desejava ser corajoso, Estelle (Rita Matiusso), uma burguesa que assassinou o bebê que teve com o amante, e Inês (Flávia Tavares Pereira), funcionária pública que é amarga e atormenta os demais com suas observações. Mortos, os três se encontram em uma sala onde são condenados a dividir o espaço em uma convivência cada vez mais insuportável que os leva à conclusão de que o inferno não tem chamas nem demônios, mas se constitui do julgamento moral dos outros. 

Releitura

Integrante da terceira edição da Mostra Divergente de Teatro, a encenação de “Entre quatro paredes” consolida Valério Peguini e o Grupo Baal entre os integrantes do primeiro time da arte divinopolitana contemporânea. Fiel ao texto de Sartre, marcado pela reflexão moral inspirada na filosofia existencialista, da qual o autor e pensador francês foi um dos principais expoentes, a montagem foi vista pela reportagem do Agora em sua noite de estreia, no sábado. Quem foi na ocasião ao Nosso Espaço pôde ver uma produção com méritos próprios que nada ficam a dever à rica tradição de encenações brasileiras do texto, iniciada em 1950 pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Entre as inovações introduzidas pela direção refinada de Peguini está um coro grego (grupo homogêneo de atores) que se ajustou bem ao enredo, ao qual conferiu expressividade e um toque lúdico. O grupo, inspirado na “Missa Verde”, do coreógrafo alemão Kurt Joos (1901-1979), foi composto por Gabriel Andrade, Iago Moura e Rodrigo Fernandes. A eles se juntou Rosa Mística Alves, que interpretou dois papéis incidentais (ligados a Garcin e Estelle), em outra inovação introduzida pelo diretor.

Repleto de sutilezas cênicas, a releitura de “Entre quatro paredes” pelo grupo Baal contou com exaustivos ensaios que ocorreram desde setembro de 2020, muitas vezes feitos por meio de aplicativos de videoconferência para evitar contatos durante os períodos mais restritivos da pandemia. “Os atores assistiram a inúmeros filmes da nossa filmografia fundamental para compor os personagens”, explica Valério Peguini. Para dar vida a sua “Inês”, Flávia Teresa inspirou-se nas divas Greta Garbo e Cacilda Becker, enquanto Rita Matiusso encarnou sua “Estelle” sob a inspiração de atrizes como Vivian Leigh. Já Paulo Marotta, bastante à vontade na pele de Garcin, inspirou-se no galã norte-americano Clark Gable. A minuciosa pesquisa, além de se refletir no figurino de Eunice Saldanha e na produção de Clara Bernardes, contou com uma atração à parte na seleção de números para a trilha sonora, em que Valério Peguini juntou Edith Piaf e Pink Floyd, Beatles e tango argentino, entre outras referências musicais que tiveram como resultado o reforço do humor irônico que Sartre imprimiu a seu texto.

Coletivo

Misto de companhia teatral e escola de atores, o Grupo Baal de Teatro se organiza como um coletivo de artes cênicas que tem hoje cerca de 20 membros. Beneficiando-se de talentos locais e da experiência de Valério Peguini, que por anos atuou na cena teatral em grandes centros como São Paulo, onde conheceu o trabalho de nomes como Antônio Abujamra (1932-2015) e José Celso Martinez Correia (1937), o Baal tem por meta tornar acessíveis as artes cênicas em Divinópolis e região. Uma das estratégias definidas para atingir esse objetivo é a Mostra Divergente de Teatro, que, além do espetáculo “Entre quatro paredes”, trará em breve apresentações de outras realizações, como “Diário de Freud”, “O circo das ilusões” e “A história do zoológico”. A expectativa do Baal, dependendo da situação sanitária em virtude da pandemia, é a de retomar suas atividades no dia 29 com a primeira das três peças.

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