No meio do caminho tem uma kombi

Márcio Almeida

Na primeira reportagem especial da série “Divino Maravilhoso”, que vai contar histórias de Divinópolis, a trajetória da Kombi da Esquina, iniciativa de um grupo de amigos que se juntaram para ouvir e divulgar música, ajudar pessoas e celebrar a mineiridade

 

“Certas canções que ouço

cabem tão dentro de mim

que perguntar carece

como não fui eu que fiz”

(Milton Nascimento/Tunai)

 

No meio do caminho tem uma kombi. Mais especificamente, um modelo 1997/1998 com dois carburadores e motor de 1600 cilindradas. Pedindo licença poética ao verso de Drummond, pode-se dizer que a kombi não está exatamente no meio do caminho, assim como não é apenas mais um utilitário saído da linha de montagem da Volkswagen do Brasil. É a Kombi da Esquina, veículo e símbolo de um projeto social e cultural que junta amigos unidos por sua admiração pela música e por sua vontade de divulgá-la em eventos capazes de entreter e ajudar pessoas.

A inspiração para batizar a kombi veio, claro, do "Clube da Esquina", de Milton Nascimento e Lô Borges, o mítico álbum duplo que acaba de completar 50 anos e ser eleito por um amplo júri técnico o melhor da história da música brasileira. Assim como a esquina de Belo Horizonte que deu título ao disco, confluência das ruas Divinópolis e Paraisópolis no mineiríssimo bairro de Santa Tereza, a perua divinopolitana é um ponto de encontro. Se a esquina de Santa Tereza reunia Milton e seus amigos nos anos 1960 e 1970, a Kombi da Esquina reúne gente do século 21 que ama a extraordinária música, sobretudo mineira, feita naquelas e em outras décadas.

A inspiração para batizar a kombi veio, claro, do "Clube da Esquina", de Milton Nascimento e Lô Borges

A inspiração para batizar a kombi veio,

claro, do "Clube da Esquina", de

Milton Nascimento e Lô Borges (Foto: Divulgação)

Esse ponto de encontro ambulante, cujo aspecto lembra a kombi do sensível longa-metragem "Pequena Miss Sunshine" (2006), tem atrás de si uma história única, a começar pelo modo como entrou na vida do casal Rômulo Santos e Luciana Antunes. Se a Kombi da Esquina junta entretenimento e ação social, foi esta, mais do que aquele, que funcionou como motor de arranque do projeto. Passando casualmente por publicações em redes sociais, Rômulo, um apaixonado por música e carros antigos, viu o pedido de ajuda de uma moradora de Divinópolis que, precisando mudar-se, não tinha recursos para custear o traslado dos móveis para sua nova residência: “Aí eu pensei: por que não comprar uma kombi e colocá-la à disposição de gente como aquela mulher?”

“Lá eu vi a fé e a paixão”

Com o apoio de Luciana e a ajuda do amigo Cristiano Camargos, um dos anjos da guarda do projeto, teve início a procura de um exemplar do mais famoso utilitário da história automobilística brasileira. A busca terminou quando Rômulo ficou sabendo de um anúncio de venda ao qual respondeu. Quando fez contato por telefone, entretanto, foi informado de que o veículo já havia sido vendido. Antes de continuar a procura, Rômulo voltou a ligar para o autor do anúncio, de quem recebeu a inesperada informação de que o negócio não havia dado certo. Combinada uma visita ao local onde estava a kombi, lá foi ele para descobrir, surpreso, que o utilitário pertencia ao Lar de Idosos, entidade assistencial ligada à Diocese de Divinópolis.

A negociação para a venda do veículo foi noticiada pela equipe da instituição em um registro feito no dia 24 de setembro em seu perfil no Instagram. “Colocamos a kombi do Lar dos Idosos à venda. Vieram vários possíveis compradores, inclusive um que nos chamou atenção, o Rômulo. Este, quando foi olhar o estado do veículo, perguntou ao missionário Renato qual a história da kombi e, após ouvir atentamente que ela teve um único dono e que desde 1997 é usada para transportar os idosos da instituição para consultas médicas e passeios, sem pensar duas vezes disse: ‘Vou comprar a kombi e sua história’. E assim fez”.

Fechado o negócio, que exigiu vários meses de paciência até que se concluíssem os trâmites burocráticos necessários à transferência de titularidade, a kombi estava pronta para ser usada nas mudanças. De novo, porém, agiu o inesperado. “Desde que ela foi comprada, por incrível que pareça, não apareceu ninguém precisando de transporte para móveis ou pertences”, conta Rômulo. Nem por isso desapareceu a ideia de usar o utilitário para ajudar pessoas. Assim, como ele e Luciana já tinham em casa um equipamento de som para ouvir música, a proposta de transformar a kombi em um veículo para a sonorização de eventos veio naturalmente. “O primeiro suporte para o som foi uma escada dobrável, do tipo vendido na Polishop, que eu pedi emprestada ao meu sogro”, lembra.

“Que notícias me dão dos amigos?”

Tendo a escada estilo Polishop como suporte do equipamento de som, a kombi fez sua estreia na vida social divinopolitana no aniversário de uma amiga de Rômulo e Luciana. Era setembro de 2021. Seguiram-se outros convites para sonorizar ambientes durante encontros particulares feitos no fim de ano. Um deles partiu do bancário Eduardo Souza, membro do círculo de amigos do casal. Partilhando com Rômulo e Luciana a paixão pela música, Eduardo convenceu ambos a levarem seu veículo à confraternização de fim de ano da instituição em que trabalha.

Como as anteriores, a nova aparição foi feita sem nenhuma remuneração e se tornou sucesso de público. Ela também serviu para integrar Eduardo ao grupo. Fã de rock, MPB e diversos outros gêneros musicais, sobretudo das décadas de 1960 e 1970, ele se tornou um dos dois DJs da equipe. “Isso veio de uma brincadeira que fizemos em várias festas, incluindo carnaval, réveillon e batizados, em que a gente assumia o som e tocava para o pessoal algumas músicas de que gostamos”, explica. O outro DJ da dupla é o profissional de marketing Erick Pereira. Amigo de Rômulo e Luciana, ele se integrou ao projeto com a esposa, Juliana Rodrigues. “Foi criada uma espécie de divisão do trabalho comigo e o Eduardo fazendo as funções de DJ, as esposas atuando como porta-vozes do grupo e o Rômulo ficando com a parte de logística do evento e assumindo a música quando é preciso”, conta.

(Foto: Divulgação)

Serra de Três Pontas

A entrada de Erick contribuiu para dar à Kombi da Esquina a identidade visual que ela tem hoje. Especializado em design gráfico, ele foi o responsável por transformar as ideias do grupo na programação visual que está na plotagem que o veículo ganhou a partir de novembro de 2021. Inicialmente, a perua recebeu nas portas a logomarca criada por Erick, uma arte circular que, além da inscrição “Kombi da Esquina”, traz os elementos que compõem o slogan do grupo: “Música, Arte, Amigos e Diversão”.

Aproveitada nas camisetas e em outros objetos que a equipe usa em eventos, a logomarca também traz desenhos. Um deles reproduz a famosa gravura que Milton Nascimento fez na infância mostrando a Serra de Três Pontas, onde foi criado, tendo ao fundo o Sol e à frente uma pequena composição de trem de ferro. Divulgada na capa de seu disco “Geraes”, de 1976, a gravura — juntando a montanha e o trem, dois dos mais poderosos símbolos de Minas — acabou incorporada ao patrimônio afetivo dos mineiros.  

Os outros desenhos da logomarca representam a própria kombi e os meninos Tonho (Antônio Carlos Rosa de Oliveira) e Cacau (José Antônio Rimes), que aparecem na icônica foto que ilustra a capa do “Clube da Esquina”. Datado de 1971, ano anterior ao do lançamento do álbum, o registro foi feito pelo fotógrafo pernambucano Cafi (1950-2019), que também fez a célebre foto do par de tênis que estampa a capa do primeiro disco de Lô Borges, lançado no mesmo ano em que apareceu seu álbum duplo com Milton. Responsável pelas capas de mais de 300 discos da música brasileira, Cafi fotografou os garotos casualmente enquanto passeava na zona rural de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, próximo à Fazenda Soledade. A propriedade pertencia à família do letrista Ronaldo Bastos, parceiro de Milton em várias composições, e era frequentada pelo artista mineiro e por membros do grupo de músicos e compositores que o acompanhavam à época. Desde que foram fotografados agachados ao lado de uma estrada, Tonho e Cacau tornaram-se um símbolo de amizade.

Além de resgatar essas e outras referências que integram o patrimônio visual da mineiridade, Erick contribuiu para a concepção da atual pintura da kombi, que ficou pronta em abril de 2022. Até então branco, o veículo recebeu uma segunda cor, o amarelo, que recobre a parte da lataria que fica abaixo das janelas. Além da logomarca, a equipe acrescentou outra referência a Milton: uma série de versos de conhecidas canções gravadas pelo cantor e por artistas ligados ao Clube da Esquina. Homenagem à música mineira, o design inclui a perua de Rômulo e Luciana na tradição das kombis personalizadas, que vai do movimento hippie dos anos 1960, do qual elas se tornaram um dos símbolos, até o período contemporâneo com seus veículos decorados à moda vintage. É também, e acima de tudo, uma homenagem à mineiridade.  

(Foto: Divulgação)
(Foto: Divulgação)

 

“Há um menino, há um moleque”

Ainda em 2021, antes que a nova pintura ficasse pronta, e antes que houvesse tempo para planejar em detalhes as atividades, aconteceu a primeira atuação social do grupo que se formou em torno da kombi. A estreia ocorreu no bairro Campina Verde em 18 de dezembro, mesmo dia da confraternização dos bancários. Registros disponíveis no perfil do projeto no Instagram mostram crianças se divertindo ao som de canções tocadas no equipamento da kombi. O cachorro quente distribuído na ocasião foi cortesia da equipe, que fez outras doações desde o início do projeto.

“Nós participamos da confraternização dos bancários sem cobrar nada, mas pedimos em troca a doação de leite”, conta Luciana. Os donativos, que vieram em generosa quantidade, transformaram-se em ajuda para pessoas carentes e entidades assistenciais como o Grupo Espírita Jesus de Nazaré, do bairro Niterói. Parte da arrecadação foi entregue à Câmara Municipal, cuja equipe contribuiu para distribuí-la entre famílias necessitadas.

Para quem buscava uma forma de ajudar, a visita de natal ao Campina Verde e a arrecadação de leite na confraternização dos bancários mostraram o caminho a ser seguido. Desde então, o projeto foi engatando marchas para andar cada vez mais rápido. Ainda em dezembro, no dia 24, a Kombi da Esquina tomou parte do Natal Solidário feito na Praça da Bíblia, no bairro São José. Dezenas de crianças e familiares participaram no local da chegada do Papai Noel, com direito a brincadeira e distribuição gratuita de lanche, feitas com o apoio de outros voluntários.

“Estrada de fazer o sonho acontecer”

As ações de caráter social, assim como a atuação em encontros privados, prepararam o caminho para que a Kombi da Esquina pudesse trilhar outra vertente, representada pela sonorização de eventos. O ensaio para a nova atividade, que foi conjugada com o trabalho social, surgiu de um convite feito pela amiga em cuja festa de aniversário a equipe havia feito sua estreia em setembro de 2021. “Ela nos chamou para um encontro organizado na sede do motoclube Tigres do Asfalto”, lembra Luciana.

A performance, feita em 11 de dezembro, caiu nas graças do público, formado por fãs de rock clássico e gêneros afins. Ao final do evento, como o presidente do motoclube insistisse, a equipe aceitou o pagamento de R$100,00. “Usamos o dinheiro para comprar um retrovisor novo para a kombi”, recorda Rômulo. Se a remuneração em dinheiro foi simbólica, a participação no encontro trouxe dividendos concretos. No evento dos Tigres do Asfalto, que funcionou como a “estrada de fazer o sonho acontecer”, a Kombi da Esquina tanto projetou sua imagem quanto ganhou experiência para atuar em outros tipos de ambientes.

(Foto: Divulgação)

 

Foi com essa experiência que o grupo encarou uma proposta até então inédita: realizar a sonorização em um evento na Hops Growler Station, uma cervejaria da Avenida Sete de Setembro dedicada a rótulos especiais. O público da casa, como o do evento na sede do motoclube Tigres do Asfalto, é constituído de fãs de rock clássico, pop e MPB. Apesar das semelhanças de perfil e das bem-sucedidas experiências anteriores, parte da equipe teve receio ao aceitar o convite feito pelo proprietário da casa, Felipe Duca, que é cunhado de Eduardo. “Ficamos imaginando se haveria gente disposta a ir até lá naquele dia para ouvir a nossa música e fazer as doações de alimentos que estávamos pedindo em troca”, observa Rômulo.

Feita no dia 23 de maio, a apresentação do grupo entrou para a história da Hops. “O evento extrapolou todas as nossas expectativas no que diz respeito a quantidade de pessoas, duração e satisfação do público”, avalia Felipe. Um fato registrado pelo proprietário da casa dá a medida da simpatia com que a Kombi da Esquina tem sido recebida em Divinópolis: “Várias pessoas chegavam, tomavam conhecimento da proposta social do evento e saíam para ir ao supermercado comprar uma doação e trazer de volta”. A simpatia inclui gestos como o de uma grande empresa local do comércio de materiais de construção. “Sem pedir nada em troca, eles doaram os dois ombrelones que temos usado para proteger o equipamento do sol”, conta Rômulo.

“Do lado esquerdo do peito”

Com os eventos dos Tigres do Asfalto e da Cervejaria Hops no currículo, não demorou até que a Kombi da Esquina fosse descoberta pelo efervescente circuito de bares do Mercado de Divinópolis. O convite para atuar no local partiu do gerente do Box 13, Paulo Jack. “Eu simpatizei com essa pegada social, que é uma coisa moderna e correta, e percebi uma conexão entre o tipo de música que eles tocam e o perfil dos frequentadores do mercado”, explica. A percepção se mostrou correta. A equipe fez sua estreia no bar em Primeiro de Junho, feriado do Dia da Cidade. Na avaliação de Rômulo e Luciana, o comparecimento do público era uma grande dúvida. Como havia ocorrido na Hops, porém, a realidade superou as projeções mais otimistas. Com o Box 13 lotado de gente vibrando com as canções selecionadas por Eduardo e Erick, várias delas incluídas na playlist a pedido do público, vieram outros convites que terminaram por colocar a Kombi da Esquina na programação regular da casa em 2022.

Em junho, após a estreia no feriado do dia primeiro, a equipe voltou outras duas vezes ao bar, no dia 16, feriado de Corpus Christi, e no dia 20, ambos com a casa cheia. Entre as duas datas, no dia 18, o grupo encontrou tempo para aceitar o convite para ir à Feira de Brechós, na Praça do Santuário, onde a receptividade ao projeto foi novamente positiva. Até o fim de 2022, somente no Box 13, estão agendadas apresentações para o final de julho e para os meses de setembro, agosto e outubro, com a possibilidade de outras datas serem incluídas. “A agenda está se enchendo”, comemora Luciana.  

De Paulo Jack, além das portas abertas, a Kombi da Esquina recebeu dicas para se estruturar. Com larga experiência em estabelecimentos comercias com música ao vivo em Divinópolis, o gerente do Box 13 mostrou à equipe que não faria sentido se apresentar em eventos e bares sem que houvesse um cachê, pois isso atrapalharia o mercado local, onde existem outras kombis fazendo sonorização. “E é justo que seja feito um pagamento para que eles possam fazer a aquisição de equipamento, discos e produtos necessários ao trabalho”, avalia Paulo Jack, que o grupo colocou do lado esquerdo do peito e transformou em uma espécie de padrinho. A negociação foi feita sem dificuldades. “Como nós não tínhamos nem ideia do que cobrar, ele nos propôs um valor condizente com aquele pago aos músicos que se apresentam no mercado”, explica Rômulo.

“Alegria e muito sonho espalhados no caminho”

A visibilidade e a aceitação obtidas pela Kombi da Esquina em curto período de tempo levaram outras pessoas a fazerem sugestões à equipe, entre elas a de criar um segmento profissional das atividades, que siga paralelamente à sua atuação social. Como mostraram as arrecadações de donativos feitas na Hops e no Box 13, as duas faces do projeto parecem plenamente compatíveis. Entre as ideias dadas ao grupo estão a de realizar um evento temático regular, em parceria com estabelecimentos do circuito de bares e restaurantes da cidade, e a de promover um evento em espaço próprio.

Outra sugestão é ampliar a ligação da Kombi da Esquina com atividades culturais. Neste caso, um ensaio das possibilidades foi feito no sábado, 16 de julho, durante o lançamento de um livro do poeta Cláudio Guadalupe na Boutique do Livro. A convite dos proprietários da casa, Denise e Daniel Bicalho, a equipe fez a sonorização musical do evento. “Foi muito gratificante, porque pactuamos com a Boutique que iríamos fazer lá uma divulgação da música mineira, inclusive a divinopolitana”, avalia Erick. Durante o evento, o grupo arrecadou livros que serão doados a entidades e famílias da cidade.

As perspectivas para projetos como a Kombi da Esquina são amplas tanto nos aspectos social e cultural quanto no de empreendimento. Elas incluem, entre outras, as possibilidades de formalização jurídica e atuação a partir de modelos como o de empresa social ou entidade não governamental. Em fase de análise pelo grupo, a ideia de ampliar as atividades está atrelada à manutenção do que já é feito em termos sociais. “O projeto surgiu como um grupo de amigos que têm afinidades musicais e já se encontravam anteriormente em outros ambientes, amigos que decidiram dar um passo no sentido de ajudar as pessoas, e assim gostaríamos que continuasse”, avalia Juliana, que divide com Luciana as funções de interagir com o público e registrar os eventos em foto e vídeo. E acrescenta: “A ideia é ampliar a arrecadação de donativos em ambientes públicos, como já acontece nos privados, mas sem esquecer o prazer de estarmos juntos para conversar e ouvir boa música”.

(Foto: Divulgação)

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”

Nas apresentações que a equipe tem feito, a boa música de que fala Juliana inclui um amplo leque de opções que vão dos Beatles e do rock clássico dos anos 1960 e 1970 até o pop de décadas mais recentes, passando, entre outros gêneros, por rockabilly, hard rock, folk, rhythm blues, soul, tecno e, naturalmente, pelos vários estilos da MPB. Quando os dois DJs do grupo estão presentes em um mesmo evento, esse coquetel sonoro costuma acontecer por meio de revezamento entre os dois. “Não tem segredo: é só a gente ir observando a chamada ‘vibe’ do pessoal e se adequando a ela, de preferência com muita variedade”, conta Eduardo, um entusiasmado garimpador de canções que mantém com Erick, via WhatsApp, uma interminável troca de sugestões e descobertas musicais.   

Nesse ponto cabe perguntar se faz sentido que um grupo identificado com a música e a cultura de Minas se abra a tantas outras possibilidades. A resposta é, com certeza, um “sim”. Na terra onde Guimarães Rosa inventou o regionalismo universal, que une o dialeto dos vaqueiros ao latim dos filósofos clássicos, nada é mais mineiro do que a mistura. Não por acaso Minas foi um dos mais ativos núcleos do movimento metaleiro que balançou cabelos longos e mentes inquietas nos anos 1980, produzindo nomes como a banda Sepultura. Também não por acaso Minas é a pátria da combinação de reggae, MPB e rock feita pelo Skank. Na cosmopolita cena musical mineira, não é casual que Beto Guedes tenha gravado canções dos Beatles e que o grupo 14 Bis tenha iniciado seu primeiro álbum, de 1979, com a canção “Perdido em Abbey Road”, em referência ao célebre disco do quarteto de Liverpool. Nem é casual a sofisticada mistura de música barroca, rock progressivo, moda de viola e blues feita por um músico do porte de Marco Antônio Araújo (1949-1986).

E nenhum acaso existe, naturalmente, no fato de Milton, tanto no “Clube da Esquina” quanto em outros álbuns, ter gravado pérolas da sua peculiar mistura de MPB com rock, folk, jazz, música sacra, ritmos latinos e toadas. “San Vicente”, por exemplo, tida pela crítica como uma das mais bem realizadas canções da história da música brasileira, só pode ser entendida à luz do diálogo de Milton com a canção latino-americana. Do mesmo modo, o álbum experimental “O Milagre dos Peixes” (1973), referência internacional em sofisticação sonora, não pode ser compreendido sem se levar em conta o rock progressivo dos anos 1970. Minas, mais do que qualquer outro lugar do Brasil, é a confluência musical onde os mais diferentes tipos de acorde se encontram. Rômulo, Luciana, Erick, Juliana e Eduardo captaram a ideia. Isso ajuda a explicar, aliás, a inscrição “Sou do mundo, sou Minas Gerais” colocada nas portas da Kombi da Esquina. Resumo emblemático da mineiridade, o verso foi tomado de empréstimo ao trecho da letra de “Para Lennon e McCartney”, parceria que Fernando Brant fez no início dos anos setenta com os irmãos Márcio e Lô Borges para homenagear ninguém menos do que a mais famosa dupla de compositores da história do rock internacional. Não causa espanto, portanto, a salada sonora preparada pela Kombi da Esquina: ser mineiro é ser plural.

Essa pluralidade é interpretada ao pé da letra pela equipe, que já pensa em formas de diversificar sua sonorização. Uma delas, em fase de implementação, é a criação do DJ Convidado, que vai ajudar a fazer uma parte das playlists dos eventos, com direito a uma palhinha ao microfone para explicar sua relação com as canções escolhidas. A proposta ganhou fôlego com as apresentações no Box 13, onde Erick e Eduardo se mantêm abertos às indicações de convidados. “Isso traz um charme e uma empatia especial ao trabalho”, avalia Paulo Jack. Outra ideia, já em estudo, é uma discotecagem feminina a ser feita por Luciana e Juliana. Em tempos de empoderamento das mulheres, a proposta é dar a elas a possibilidade de mostrar uma percepção feminina da música. E o que seria prioritariamente tocado na playlist da dupla de mulheres da Kombi da Esquina? A resposta está na ponta da língua. “Com certeza, várias de Cássia Eller, que eu amo, muitas de Rita Lee e Pink, mas também as internacionais, como Janis Joplin, que não pode faltar, The Cramberries e a Amy Macdonald, com quem eu fiquei encantada”, lista Juliana. A sequência de Luciana sai com a mesma rapidez. “Além de Cássia, Rita e Janis, eu incluo aí Tina Turner, Madona e Amy Winehouse”. É difícil discordar da dupla.     

(Foto: Divulgação)

 

“Coração civil"

Tem uma kombi, portanto, no meio do caminho. E um passeio pelos vídeos e fotos disponíveis em rede social deixa claro que seu trajeto, até aqui curto mas intenso, pode ser visto de diferentes modos. Registros como os dos eventos na Cervejaria Hops e no Box 13 mostram que ali está uma oportuna alternativa de entretenimento para quem gosta de rock, pop, MPB e derivados nestes tempos em que uma espécie de ditadura estética, aliada a interesses econômicos, parece tentar impor um único gênero musical aos eventos realizados de norte a sul do país. Nesse sentido, as imagens da própria kombi, com suas laterais ilustradas com referências ao maior álbum da história do Brasil, já são uma demonstração de mineiridade neste ano em que a voz-símbolo de Minas realiza sua despedida dos palcos com o show “A última sessão de música”.

Por sua vez, registros como os do Campina Verde e da Praça da Bíblia, cheios de crianças e da alegria que elas irradiam, assim como os que foram feitos por ocasião da entrega de donativos, mostram que na equipe da Kombi da Esquina bate o “Coração civil” que Milton e Fernando Brant homenagearam em uma das muitas obras-primas da parceria. Este coração, aliás, precisa ser disseminado com urgência em um país com mais de 30 milhões de cidadãos e cidadãs vivendo abaixo da linha da pobreza.

Por fim, mas não menos importante, há nas redes sociais os registros de cinco amigos reunidos em torno da música tocada no equipamento de som da kombi. Neles se vê a amizade que deu origem ao projeto e o mantém com os pés na estrada. É essa amizade, temperada à moda mineira, que fez história nos anos 1960, quando Milton e os amigos, sem dinheiro para ir aos clubes de Belo Horizonte, reuniam-se para cantar e tocar na esquina da Rua Divinópolis onde moravam os irmãos Borges. E é essa amizade que agora, mais de meio século depois, faz sua travessia pelas ruas e praças de Divinópolis, cidade onde a Kombi da Esquina, carregada de música e solidariedade, vem ajudando a fazer os bailes da vida.

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Márcio Almeida (Oliveira, MG, 07/11/72) é professor, jornalista e analista político do jornal Agora e do programa Panorama Geral, da Rádio Divinópolis. É autor de diversos livros, entre eles “Crônicas Quixotescas”, “Almanaque Lírico de Minas”, “5.0 - Impressões sobre meio século de vida”, “Para ler notícias” e “O G da Questão”. Adotou Divinópolis como lar há uma década. É apreciador de amizades, música, poesia, árvore, vento de montanha, água de mina, gargalhada de criança, café forte, pão de queijo quente, angu com jiló, torresmo, cachorro e passarinho longe de gaiola. Nos anos 1990 recebeu de Deus o privilégio de entrevistar em uma cozinha mineira o Vaqueiro Manuelzão (1904-1997), imortalizado por Guimarães Rosa, e dele ouviu que o sertão está dentro e não fora de cada um e que amor é roça de plantar e colher. Em 2022, quando completa 50 anos, Márcio deu de presente a si mesmo algumas horas livres junto ao vira-lata Toddy, fã de Milton e dos Beatles, para escrever crônicas e reportagens sobre Minas, uma de suas paixões, e sobre pessoas, lugares, fatos, instituições, obras, costumes e ideias que vem encontrando pelo caminho. Sugestões de temas para os textos são bem-vindas e podem ser encaminhadas por e-mail ([email protected]), Instagram (marcioalmeidamg) ou Facebook (Márcio Almeida).

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