Juvenal 6.0

Breve perfil de um senhor na recém-desabrochada flor de seus 60 anos

CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS

Márcio Almeida

Aconteceu há alguns anos durante uma das feiras da Boutique do Livro na Usina Gravatá. Chegando ao evento no meio da tarde, paro para observar os estandes montados na área externa do teatro. Atrás de mim, próximo a uma mesa de autores da região, uma equipe de TV grava entrevista. Fico no local por menos de dez segundos. É tempo suficiente para que alguém me belisque as nádegas em um lindésimo de segundo, como diria o poeta Leminski. Ao me virar para trás com um reflexo instantâneo, já torcendo para que a cena não tenha se tornado uma atração à parte para os visitantes do evento, percebo que o meu susto foi obra do ilustre cidadão que a TV havia acabado de entrevistar: o palhaço-ator-cantor-músico-poeta-contador-de-histórias-agitador cultural-educador Juvenal Bernardes, que no último dia de São João, se não me trai a memória, tornou-se, como ele próprio se definiu, um sexygenário.

Não encontro, nesta ocasião de dupla festa junina, melhor lembrança do que aquele susto no Gravatá. Pois Juvenal é um beliscão no cotidiano de Divinópolis. Assim como é um grito, uma gargalhada, uma cambalhota, uma piscadela e um sussurro. Tenho a honra de integrar há dez anos o respeitável público que o aplaude. Esse caso antigo de tietagem começou no Colégio Integral, onde Juvenal costuma ser requisitado para ilustrar com um número artístico a proposta de cada novo projeto pedagógico. Lembro sem esforço a sua entrada, com cartola e tambor, no meu primeiro “dia de salão”, como são chamadas as atividades que reúnem turmas do colégio em um mesmo auditório. Antes disso, em nosso primeiro intervalo juntos na sala de professores, eu já recebera de Juvenal uma saudação pessoal: um abraço forte e um livro sobre produção textual, disciplina que ele havia ministrado antes de migrar para o ensino da literatura e que eu assumia naquele momento.

Na força daquele abraço, eu soube depois, estavam contidas as boas-vindas dadas por um grande amigo do meu pai, que havia sido jurado em um concurso literário que Juvenal venceu nos anos 1980. E foi assim, em prosa e verso, que a amizade fluiu de uma geração a outra. Pouco depois, eu já tinha comprado a caixinha de fósforos poéticos — uma daquelas ideias das quais se tem inveja sadia — e me tornado frequentador contumaz das contações de histórias feitas nas manhãs de sábado, na Boutique do Livro, ou nas de domingo, na Praça da Catedral. Agora, muitas fábulas e poemas depois, percebo que a minha impressão de uma década atrás, quando eu era ainda recém-chegado à cidade, confirmou-se com juros e correção literária: Juvenal não é só um dos mais completos artistas que tenho visto. Sem hipérbole, essa figura que tanto encanta os barrocos quanto horroriza os neoclássicos, é também, em suas várias faces, uma das personalidades centrais para compreender a cena contemporânea de Divinópolis. 

Essas múltiplas faces dispensam apresentações. Afinal, já são bem conhecidos do púbico tanto o poeta de extraordinário domínio técnico da palavra, com uma facilidade rara para a musicalidade dos versos curtos, quanto o artista performático que tem mãos e pernas de mestre para compor a cena. Não menos conhecidos são o contador de histórias capaz de magnetizar crianças, o educador que vai muito além da apostila ao ensinar que o gosto da leitura é melhor do que as fórmulas didáticas e o formador de opinião que prefere comprar briga a se calar diante do que julga ser a hipocrisia de alguns. Assim, nestes tempos que reclamam professores capazes de ensinar com arte, artistas capazes de empreender e empreendedores capazes de surpreender seu público no picadeiro do mercado, há muito o que aprender com quem circula com desenvoltura entre as fronteiras.

Se o clichê não desonrasse a alta prosopopeia do aniversariante, eu poderia dizer que os futuros historiadores da vida cultural divinopolitana encontrarão extraordinária dificuldade em tentar classificar Juvenal nos estreitos esquemas de “vida e obra”, os quais, aliás, ele odeia enquanto professor de literatura. Prefiro dizer que, se o interpretarem bem, os historiadores do nosso tempo haverão de concluir que Juvenal, politalentoso amante de tantas artes e ofícios, é hoje aquilo que provavelmente a vida vai requerer que sejamos todos em breve: divididos em nossos diferentes afazeres e inteiros em cada um deles.  Mas não nos curvemos tanto em direção ao futuro, senhoras e senhores, ao falar deste senhor de cartola, nariz vermelho e tinta branca no rosto. Pois o que são sessenta fogueiras de São João para quem, a cada ano, põe uma ideia nova em cartaz e renova seu contrato vitalício com a infância? Borandá, Juvenal, que o espetáculo só começou.

 

Márcio Almeida é jornalista, professor e analista político em Divinópolis.

E-mail: [email protected]

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