Freire e a Santa do Cajuru

Freire e a Santa do Cajuru - Raimundo Bechelaine

Setembro de 1921 tem lugar decisivo nas biografias do nosso filósofo Paulo Freire e de Maria Taveira, a "santa do Cajuru". Ele chegava a este mundo, ela saía dele. Ou seja, há 100 anos, no dia 19 daquele mês, ele nascia, em Recife; cinco dias depois, no então Distrito Cajuru de Itaúna, Cajuru, ela morria. Neste pandemíaco ano de 2021, portanto, completa-se um século do nascimento dele e da morte dela. 

Além dessa fortuita coincidência, nada mais parece haver que os reúna. Ou há? Dele não é preciso dizer mais. Pois é um dos brasileiros mais conhecidos no mundo todo, estudado e reverenciado nas grandes universidades. 

Ela, filha de escravos, nascida em 1845, foi uma das alforriadas pela Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Dizem que passou muita fome, recorda D. Ceci Maia Fonte Boa. Não é de admirar-se, pois os ex-escravos não foram indenizados nem receberam bens ou pensões para começarem a nova vida. A partir de 1906, ela ficou totalmente paralítica e permaneceu imobilizada, na cama, até a morte, dependente da caridade dos vizinhos.

Começaram a correr relatos de que tinha visões celestes e fazia milagres. A pedir suas preces e bênçãos vinha gente de longe, o que se tornou mais fácil depois da inauguração da via férrea, em 1911. Outros a ela recorriam até pelo correio, enviando-lhe também donativos. Destinava parte dessas ofertas para a construção da Matriz de Nossa Senhora do Carmo. Tornou-se conhecida em regiões longínquas, como "a santa do Cajuru".  Foi mencionada no "Álbum Católico do Estado de Minas Gerais 1918-1923" (cfr. p. 81), pelo escritor e jornalista Moacir Assis Andrade, membro da Academia Mineira de Letras.

Curiosamente foi quase totalmente esquecida. Em seu livro "História de Carmo do Cajuru", o historiador e professor Oswaldo Diomar citou-a entre os "personagens folclóricos", embora lhe tenha dedicado seis páginas. Curiosamente também, agora, no seu centenário de morte, emerge do esquecimento. Anuncia-se que o empresariado e outros poderes locais vão erguer-lhe um monumento. Por que a inesperada devoção?

Refletir não custa. Cajuru vive um momento de expansão econômica. José Luís Fiori, em recente artigo sobre o centenário de Paulo Freire, escreve: "Em sociedades cuja dinâmica estrutural conduz à dominação das consciências, 'a pedagogia dominante é a pedagogia das classes dominantes'." Isto parece não ter nada a ver com a santa cajuruense e a tentativa de resgate de sua memória. Ou pode ter muito a ver. Afinal, pedagogia não é prática de sala de aula somente. Religião, crenças e devoções mostram-se, ao longo dos tempos, eficientes moldadores de consciências. 

"Quem puder entender entenda." Assim dizia o mestre que os conservadores morais e religiosos crucificaram. [email protected]

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