Família e a desordem na ordem

O mundo foi plateia no último fim de semana, da coroação do rei Charles III e de sua amada Camilla. Eu poderia dar ênfase na história da tradição monarca, que é marcada pela força e poder, ou até mesmo falar sobre o ritual considerado medieval em que o rei e a rainha foram ungidos com um óleo consagrado em Jerusalém. Diga-se de passagem, o único ritual que escapou dos olhos dos veículos de comunicação, protegidos por um dossel. Ainda poderia fomentar que pela primeira vez, uma rainha com um divórcio no currículo foi coroada e ungida, pajeada pelos netos, frutos do casamento anterior. Contudo, algo ainda mais oponente seria falar sobre o tempo, pois o reinado de Charles e Camilla está fadado a ser uma transição, falará mais sobre o que eles deixarão para o filho primogênito do rei Charles, William, seu sucessor. Aqui se encontra o ápice do contexto do que desejo falar, pois me chamou atenção a repercussão e comoção causada em razão da foto oficial da família real em que o filho caçula do rei Charles, príncipe Harry não pôde fazer parte. Enquanto muitos celebravam ele sofria calado e televisionado pelo mundo, revivendo os sentimentos que nortearam toda sua vida. Harry se sente o filho reserva, de conduta e escolhas inaceitáveis, exposto ao mundo pela escolha de se libertar do sistema monarca. Alguns apontam como rebeldia, outros como libertação, mas eu consigo enxergar além dos vieses indicados.  Penso que todas as pessoas, independente do título, do saldo bancário e do poder de influência são humanos como nós. A dor ficou externada no olhar e nas expressões faciais de Harry durante a coroação. As marcas que ele carrega consigo em razão das consequências das escolhas de seus antepassados. O poder de escolha está inserido em sistemas e naqueles que possuem a altivez de desenhar o destino de alguém. A capacidade de escolha sem a preocupação dos impactos que acontecerá diretamente na sua próxima geração. Aqui falo sobre o início da história, pois nunca foi segredo entre os monarcas que o grande amor da vida do rei Charles é Camilla, tanto que ele a namorou antes de namorar Diana e posteriormente forçado, condicionado a se casar com Diana, manteve Camilla como sua amante. Logo após a trágica morte de Diana, o rei assumiu Camilla. A imposição do monarca pelo casamento de Charles com Diana estendeu a história com marcas ferrenhas nos filhos gerados pelo casal. O sistema falou mais alto do que o fato de que a infância é um chão que a gente pisa a vida inteira. Na biografia de Harry ele conta que quando criança ouvia os pais discutirem e do rei dizer a Diana que ela já havia dado a ele o que ele precisava, que era um sucessor e um reserva. O rei se referia a Harry como o “reserva”. Harry conta que não conseguiu chorar no velório da mãe por ter sido ensinado que não deveria externar suas emoções em público. Ele narra a angústia e a dor por não conseguir chorar no velório de Diana enquanto o mundo todo fazia. Ele confessa que durante anos alimentou a fantasia de que a mãe não estaria morta, que Diana havia criado aquela situação para se furtar de conviver com a realeza e que a qualquer momento ela voltaria para buscá-lo junto de seu irmão. Harry cresceu se sentindo o patinho feio, o irmão ‘reserva’, enquanto o que ele mais almejava era ser aceito, amado, respeitado e admirado pelos monarcas. A lacuna causada pelos monarcas está aparentemente sendo suprida pela esposa Meghan, que com um severo poder de influência o apoiou romper com as tradições, escancarando as dores que ele tentou esconder em toda sua vida. O poder de influência da esposa caracteriza o vazio deixado pela figura feminina, materna. A revolta e a tristeza pela relação confusa de Diana com os monarcas e o desamor do pai pela mãe, agregado à forma pela qual Diana foi drasticamente tirada de sua vida e da história. Aqui concluímos que ele possui tudo e não tem nada.  O que é a felicidade de fato? Até onde romper com a necessidade de se render aos caprichos dos pais conduz os filhos a uma tragédia maior? Até onde os filhos desacatando o poder de escolha dos pais estariam lhes desonrando? Imaginemos que o príncipe Harry movido pela necessidade de aceitação dos monarcas rompesse sua aliança com a esposa, também não aceita pelos monarcas, e descobrisse adiante que nada mudou em relação à maneira que os monarcas o enxergam. Conseguem pensar qual a dimensão da confusão mental e frustração desse rapaz? E se Harry não rompe com a esposa ele tende a passar os anos vindouros distante de suas raízes, de seu núcleo familiar, o que não é natural e nem saudável para ninguém. Simulando uma situação de contexto análogo como essa no Brasil, ela infringiria algum dos direitos da personalidade de Harry? Na próxima semana, falaremos sobre esse tema. E você, quantos Harrys na vida você conhece?    

 

 

Por Flavia Moreira. Advogada, pós-graduada em direito Público, Direito Processual Civil, pelo IDDE em parceria com Universidade Coimbra de Portugal, ‘IUS GENTIUM CONIMBRIGAE, especialista em Direito de Família e Sucessões, associada ao IBDFAM e membro do Direito de Família da OAB/MG.

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