Estelionato sentimental

Acredito piamente que nenhum recomeço é do zero. Os recomeços trazem consigo a experiência de não cometermos os mesmos erros, pois certamente estaremos cercadas de mais pessoas, sabendo o que não se deve e não se pode fazer diante de uma nova oportunidade. A maioria das coisas travadas, para recomeçar, precisam ser reiniciadas. Reiniciar, sem retroceder.   

 

Quando se trata de estelionato sentimental, muitas pessoas sentem vergonha de recorrer ao Poder Judiciário. Talvez por alimentarem a ideia de que a situação evidencia sua fragilidade, carência e até dada inocência. Ao contrário, as vítimas desse delito cruel geralmente são portadoras de uma idoneidade admirável, mas não se alertaram de que peso morto faz barco afundar. Foram ludibriadas e conduzidas a acreditar cegamente na parceria e comunhão da vida a dois por quem sequer merecia a sua presença. Escrevo este texto na intenção de exortar o leitor de que a emoção mão muda o momento, mas a instrução altera o futuro.   

 

Para o direito, no que tange à responsabilidade civil, esta abrange a presença de alguns elementos: a conduta lícita, o dano e o nexo de causalidade. O estelionato afetivo decorre de uma prática que se configura a partir de relacionamentos afetivos e amorosos, cujo conceito se torna o elemento típico do artigo 171 do código penal. Daí nasce a dúvida: o estelionato sentimental seria somente aquele que nasce no intuito de angariar a confiança do outro para obter vantagem econômica ou não seria também a simples defraudação do sentimento e do tempo de uma pessoa? Bom, partindo do princípio de que é necessário o rombo material para melhor identificá-lo, recordemos de que quem engana não cria recibo contra si. O estelionatário sentimental não surge como um sanguessuga, e sim como uma pessoa que merece a confiança da outra, um expert em manipulação e, posteriormente, dominando a vítima, aos poucos ou ligeiramente, dilapida seu patrimônio e desaparece logo em seguida, causando à vítima perdas econômicas e emocionais. 

 

Preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, em que o estelionato infringe os devedores de confiança e lealdade, há também as dores emocionais, regadas pela frustração, medo, vergonha, a partir das quais nasce um grande constrangimento para as vítimas, que constitui fato ofensivo a seu direito da personalidade. A questão é identificar com precisão, pois diversas pessoas sofrem dessa violência e só se dão conta após um rombo estrondoso, quando os extremos das perdas confrontam a realidade, obrigando-lhe a tomar uma decisão. Uma vez constatada, comprovada, além do ressarcimento do que lhe foi subtraído, a vítima guarnece o direito de ser indenizada por meio do valor estimado pelo juiz, sobre o razoável e justo, de maneira que não enseje o enriquecimento ilícito da vítima, mas lhe repare moralmente. Sabemos que defraudar o sentimento do outro pode gerar perdas irreparáveis, mas é possível amenizá-la quando, em tempo e com provas robustas do fato, é reivindicada judicialmente a aplicação da mais salubre justiça. Afinal, as melhores pessoas são as que carregam consigo a gentileza, mas oferecê-la constantemente àqueles que não a merecem pode lhe custar o patrimônio de uma vida e a retenção do direito à recomposição da dignidade da pessoa humana. A boa notícia é que, diante de uma situação trágica, o recomeço é o ambiente favorável, no qual só entram pessoas certas, se a vítima seguir as instruções adequadas. 

 

     

  

Por Flávia Moreira. Advogada, pós-graduada em direito público, direito processual civil, pelo Idde em parceria com Universidade Coimbra de Portugal, ‘Ius Gentium Conimbrigae, especialista em Direito de Família e sucessões, associada ao IBDFAM e membro do direito de família da OAB/MG.

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