Editorial: Não é amanhã

No livro “Alice no País das Maravilhas”, o autor Lewis Carroll traz um diálogo interessante entre a personagem principal e o “Chapeleiro Maluco”, que tem uma importante lição. Quando Alice tomava chá com o Chapeleiro, ela notou que não havia geleia. Ela, então, pede. Em resposta, ouve: “A geleia é servida dia sim, dia não”. Alice reclama: “Mas ontem também não havia geleia!”. “Isso mesmo”, responde o Chapeleiro: “A regra é esta: geleia sempre ontem e geleia amanhã, nunca geleia hoje… porque hoje não é ontem nem amanhã”. Em outras palavras, o diálogo resume o que boa parte da humanidade pratica: a ação sempre amanhã, nunca hoje, porque hoje não é ontem, e ontem não é amanhã. 

As responsabilidades ficam apenas no falatório. Na “sociedade do espetáculo” é melhor falar, criticar e apontar do que cumprir com a sua obrigação, com a parte do dever cabe a cada cidadão. Todos estão voltados apenas para os julgamentos, para “a geleia do ontem, do amanhã, nunca a geleia do hoje”. É justamente nessa cega e egoísta visão que a sociedade abre brechas para velhos problemas voltarem e novos surgirem. A dengue avança fazendo vítimas fatais,  e as chuvas, com os bueiros entupidos e a falta de planejamento e ação dos governos, alagam casas, levam bens materiais e obrigam famílias a procurar abrigo. 

O Brasil enfrenta mais uma vez uma epidemia de dengue, e a tendência é que a situação piore. Falar desse assunto pode parecer cansativo, mas a verdade é que essa é uma conta que não fecha: como os brasileiros podem ser autodestrutivos a esse ponto? Evitar uma epidemia de dengue deveria ser algo simples, todas as formas de combate são amplamente conhecidas e de fácil ação. Uma pequena vistoria no quintal e pronto; tudo pode estar resolvido. Mas por aqui, na sociedade do “ontem e do amanhã”, a culpa é dos lotes, mesmos estudos comprovando que mais de 90% dos focos do mosquito Aedes aegypti estão nas casas. Por aqui, onde falar, apontar e julgar é mais fácil do que fazer, a responsabilidade nunca é minha, é sempre do outro. Afinal de contas, para que se preocupar, se dar o trabalho de fazer algo tão simples, como dar uma olhada no quintal, nas calhas, nas caixas d’água, se os brasileiros podem simplesmente “determinar” a causa do problema, quando o problema é um só: a falta de responsabilidade e, claro, de respeito consigo mesmo e com o coletivo. 

Quando Lewis Carroll escreveu “Alice no País das Maravilhas”, ele mal sabia que suas palavras ecoariam no tempo e trariam reflexões importantes. Sem saber o que está fazendo ao certo, a sociedade segue vivendo num eterno ontem e amanhã, sem pensar no hoje e nos frutos a serem colhidos. É neste ponto que vem uma das reflexões mais importantes: o que esperar do amanhã, se as sementes plantadas no ontem, no hoje, não são as melhores? Há algo bom para se esperar desta falta de responsabilidade? A resposta, talvez, seja mais clara do que se imagina.

 

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