Domingos Sávio e a polêmica do Congresso Revisor

CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS

Márcio Almeida

Domingos Sávio e a polêmica do Congresso Revisor 

O que está em jogo na Proposta de Emenda à Constituição que propõe dar ao Congresso a possibilidade de rever decisões do Supremo Tribunal Federal? Há na política brasileira um excesso de interferências do Judiciário? Ou há um excesso de ativismo contra a Constituição por parte do governo? Para responder a essas e outras perguntas que estão surgindo nos últimos dias,  quando o assunto se tornou um dos mais discutidos do país, o Agora pediu ao analista político Márcio Almeida que explique, de modo abrangente e em linguagem acessível, o pano de fundo e as questões políticas e jurídicas envolvidas na polêmica proposta feita pelo deputado Domingos Sávio. O resultado, que você lê aqui, é uma das mais completas análises até agora publicadas na mídia brasileira sobre essa questão que envolve a política e o Poder Judiciário, assim como envolve a cidadania e a democracia.

 

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Há questões jurídicas e políticas profundas implicadas na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende dar ao Congresso Nacional o poder de rever decisões não unânimes do Supremo Tribunal Federal (STF). Articulada pelo deputado federal Domingos Sávio, que está coletando assinaturas para fazê-la tramitar, a ideia é que as revisões se tornem possíveis quando obtidos os votos favoráveis de pelo menos três quintos dos integrantes da Câmara e do Senado. Para Domingos Sávio, recém-filiado ao Partido Liberal de Jair Bolsonaro, trata-se de buscar o equilíbrio hoje comprometido entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Para os críticos da PEC, trata-se de uma tentativa de limitar a margem de atuação dos ministros do STF nos cada vez mais frequentes embates que eles têm com o presidente da República e seu grupo político. É necessário avaliar com cuidado ambas as narrativas a fim de determinar com clareza o que está em questão. 

 

Judicialização

Na mídia, onde a PEC vem merecendo intensa discussão nos últimos dias, alguns defensores da ideia do Congresso Revisor, também chamada pela mídia de PEC do Centrão, têm afirmado que a criação dessa possibilidade no ordenamento jurídico, além de não comprometer o funcionamento do STF, busca combater a judicialização da política e o ativismo do Poder Judiciário. Convém separar os conceitos nessa afirmação. Fato incontestável no atual arranjo institucional brasileiro, a judicialização da política não é moda inventada por Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso ou outros ministros do STF que os bolsonaristas têm tratado publicamente como desafetos em razão de decisões contrárias ao governo. Entendida como a possibilidade de magistrados interferirem na realização de políticas públicas, a judicialização é produto da reconfiguração do papel do Poder Judiciário promovida pela Constituição (CF) e por algumas de suas emendas. O que a CF e suas modificações fizeram, depois de quase duas décadas e meia do regime de exceção que inflou o papel do Executivo em detrimento dos outros poderes, foi ampliar as possibilidades de os membros do sistema de justiça — magistrados, representantes do Ministério Público e defensores — contestarem decisões ou omissões de agentes políticos por meio do controle de constitucionalidade ou da tutela de interesses coletivos e difusos. Entre os mecanismos de controle, cujo mérito é decidido pelo STF, encontram-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que já existia no ordenamento brasileiro e foi ampliada para alcançar casos de omissão dos agentes políticos (ADO), e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), além da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Tais instrumentos podem ser usados tanto nos processos que estão em andamento em qualquer órgão do Judiciário (controle concreto com efeito inter partes, isto é, que tem valor apenas entre as parte do processo), segundo o modelo estadunidense, quanto na análise de leis e atos governamentais pelo STF (controle abstrato, com efeito erga omnes, isto é, que tem valor para toda a sociedade), segundo o modelo adotado na maior parte dos países da Europa Continental. A esses recursos, destinados ao controle de constitucionalidade, podem ser acrescidos instrumentos processuais também capazes de impactar na realização de políticas públicas, como a Ação Civil Pública, o Mandado de Segurança Coletivo e a Ação Popular, que têm sido amplamente empregados na vida institucional brasileira.  

Essa ampla abertura para o controle de constitucionalidade fica ainda mais larga em razão de dois fatos conhecidos. Um deles é que os constituintes, na evidente tentativa de garantir e ampliar conquistas sociais dificultadas pelo regime de exceção instalado em 1964, não se limitaram a colocar na CF os dispositivos tipicamente constitucionais que organizam o Estado e estabelecem as regras gerais da vida política (aquilo que os autores de língua inglesa chamam de “polity”). Eles decidiram que a CF deveria conter também dispositivos, típicos de leis ordinárias, que tanto garantem direitos sociais — como Saúde, alimentação, Educação, lazer, segurança, transporte, habitação, seguridade, assistência social e proteção a vulneráveis — quanto direcionam as políticas públicas destinadas a efetivá-los (aquilo que no jargão dos autores de língua inglesa se chama de “policy”).  

O outro fato é que vários atores institucionais foram legitimados pela ordem jurídica brasileira para provocar o controle de constitucionalidade junto ao Judiciário. O rol inclui tanto as mesas da Câmara e do Senado quanto as das assembleias legislativas estaduais, além das direções de partidos políticos e de entidades de classe de âmbito nacional e do conselho federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A conclusão impõe-se de modo lógico: somando-se um texto constitucional hiperanalítico que dispõe sobre praticamente tudo a um controle de constitucionalidade que é acessível a múltiplos atores institucionais, obtém-se um quadro em que a judicialização da política não é um acidente de percurso. Ela é, sim, uma decisão programática dos parlamentares constituintes e dos legisladores que aprovaram emendas à CF para reformular o sistema de justiça. Tanto é programática esta decisão que o texto constitucional original já prevê, em seu artigo 5º, o chamado princípio da inafastabilidade do controle judicial: nenhuma ameaça ou lesão a direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário. 

 

Democracia

Neste ponto, tendo em vista a análise da PEC proposta por Domingos Sávio, é útil que duas perguntas sejam formuladas. A primeira delas é a seguinte: essa ampla abertura à participação do Judiciário nas políticas públicas e, por extensão, na vida política é positiva ou negativa para a democracia? A outra é esta: no caso do Brasil, a partir da CF, tal participação vem sendo feita de modo equilibrado ou, como sustentam o deputado e os defensores da PEC do Congresso Revisor, tem motivado um ativismo que leva ao desequilíbrio entre os poderes?  

A primeira pergunta deve ser respondida de modo afirmativo. A judicialização é, sem dúvida, uma garantia democrática e se coloca a serviço da promoção da cidadania e da dignidade humana, bases da República brasileira segundo o artigo 1º da CF, assim como contribui de modo decisivo para o combate à desigualdade, à marginalização e à discriminação, combate este que se encontra entre os fundamentos republicanos, segundo o artigo 3º do texto constitucional. A análise do período histórico posterior a 1988, quando a atual Carta foi promulgada, mostra de modo incontestável que seria pior a vida da sociedade brasileira se ela não tivesse podido contar — ao pleitear direitos e políticas públicas que os efetivem — com a ajuda de magistrados e representantes do Ministério Público e de órgãos de defensoria agindo por meio do controle de constitucionalidade e outros instrumentos. Assim, para ficar com apenas alguns exemplos, pode ser lembrado que não se deveram ao Congresso, que se manteve omisso nessas e em várias outras ocasiões, e sim aos atores do sistema de justiça, inclusive o STF, medidas como a incorporação de medicamentos antirretrovirais ao Sistema Único de Saúde (SUS), a permissão para o aborto de fetos anencefálicos e o reconhecimento da validade jurídica de uniões civis homoafetivas. 

Foi também por força da judicialização que se impediram ações ou omissões governamentais de caráter prejudicial ao interesse público. Limitando-se a amostragem ao período de governo do presidente Bolsonaro, poderiam ser citados dezenas de casos em que a judicialização, via STF, conseguiu impedir medidas ou omissões governamentais danosas. Foi o STF, diante da demora do governo federal em se mobilizar para combater a pandemia, que reafirmou a autonomia de estados e municípios para adotar medidas de restrição do convívio social destinadas a barrar a disseminação da covid-19, doença que até agora levou quase 670 mil vidas. Foi o STF que derrubou a medida provisória em que Bolsonaro não considerava doença ocupacional os casos de contaminação de trabalhadores por covid-19. E foi o STF, entre várias outras decisões, que impediu Bolsonaro de limitar o acesso da população a informações sobre a doença e de extinguir conselhos que asseguram a possibilidade democrática de representantes da sociedade civil participarem da formulação de políticas públicas em diversas áreas de atuação do governo federal. 

A lista poderia prosseguir por mais de 100 episódios em que o bolsonarismo foi contido ou obrigado a agir pela mais alta corte da justiça brasileira. Isso explica, a propósito, o radicalismo dos ataques que membros do grupo político de Bolsonaro têm feito aos ministros do STF. Também explica a cuidadosa seleção de perfil ideológico — vejam-se os bolsonaristas assumidos André Mendonça e Kássio Nunes — que o presidente vem fazendo ao escolher os nomes que indica ao STF para o preenchimento das vagas que têm surgido em seu período de gestão, já que cabe ao presidente fazer as indicações.

Portanto, além de ser juridicamente coerente, na medida em que integra o desenho institucional contido na CF, a judicialização é socialmente necessária, na medida em que corrige, por via do chamado sistema de freios e contrapesos, as omissões e as ações socialmente danosas dos outros poderes, assegurando melhorias significativas às políticas públicas. Limitá-la não é, pois, medida de interesse público, assim como não torna mais equilibrado o exercício institucional da democracia no Brasil. 

 

Ativismo

É possível responder agora à segunda das perguntas anteriormente formuladas: a judicialização vem sendo praticada com equilíbrio no Brasil? Ou, como entendem Domingos Sávio e outros defensores da PEC do Congresso Revisor, ela tem motivado um ativismo que leva ao desequilíbrio entre os poderes? Os críticos da proposta dirão, como de fato têm dito pela mídia, que não há ativismo e que Domingos Sávio está, no fim das contas, buscando a via legislativa para realizar aquilo que bolsonaristas radicais, como o deputado Daniel Silveira, ou simplórios, como o ex-deputado Sérgio Reis, tentaram fazer pela via da força ao, respectivamente, ameaçar a integridade física de ministros do STF e declarar que a sede do órgão poderia ser invadida por populares por ocasião dos atos de protesto que ocorreram em Brasília durante o último feriado de 7 de Setembro. Ou seja: Domingos Sávio, segundo tais críticos, se colocaria, com sua PEC, a serviço do bolsonarismo radical em sua luta contra o STF e outras instituições do Estado Democrático. Não se pode negar que a proposta do deputado vai ao encontro dos interesses do presidente e de seus seguidores mais exaltados em suas reiteradas manifestações contrárias ao STF. Todavia, não é correto reduzir a argumentação de Domingos Sávio a uma demonstração de subserviência ao bolsonarismo raiz ao qual ele está recém-convertido. Nesse sentido, uma análise minimamente honesta dos fatos obriga a dar uma outra resposta à pergunta feita acima. Tal resposta é que a judicialização vem, sim, degenerando com frequência em um ativismo do Judiciário, trazendo às vezes impactos adversos para os demais poderes e para a sociedade. 

Um destes impactos consiste na insegurança jurídica. Ela decorre de fatores como a histórica resistência de parte dos magistrados à padronização de decisões por meio de uma maior valorização de precedentes. Como especialistas vêm apontando, ao subvalorizar a jurisprudência ou até mesmo negá-la como fonte válida do direito, em nome de uma autoconcedida liberdade para interpretar normas em cada caso individual do modo como julgam adequado, juízes acabam comprometendo tanto a igualdade perante a lei quanto a previsibilidade necessária ao bom funcionamento de várias iniciativas sociais e governamentais. Em não poucas vezes, magistrados nem sequer são coerentes com seus entendimentos anteriores a respeito da mesma matéria, sem que se tenha verificado fato significativo que motive a mudança de opinião. Foi o que aconteceu ao ministro Gilmar Mendes nos julgamentos em que o STF decidiu sobre o cabimento de prisão do réu após sentença condenatória proferida em segunda instância. Gilmar Mendes votou contra a prisão nessa circunstância em 2009, a favor dela em 2016 e novamente contra em 2017. Em qualquer setor de atividade, um cidadão com esse histórico de opiniões a respeito de matéria de sua especialidade sofreria um sério questionamento sobre o funcionamento de suas faculdades mentais. No STF, entretanto, isso não chegou a causar surpresa, justamente por não ser raro. A recusa em valorizar precedentes — apesar de inovações positivas como a repercussão geral e a súmula vinculante, que reforçam a lógica jurídica ao estimular igual tratamento para casos iguais — é agravada pela conhecida tendência de parte da magistratura de supervalorizar no processo de decisão os princípios constitucionais, inclusive os não explícitos, em prejuízo da legislação ordinária, ainda que específica. Como dispositivos constitucionais são, por natureza, mais abertos ao esforço de interpretação do que a legislação específica, o “principiologismo” — como é chamado, com alguma ironia, por seus críticos — não raro produz surpresas e, por conseguinte, insegurança jurídica.  

 

Orçamento

Outro impacto do ativismo judiciário, com especial importância para as políticas implementadas pelo Executivo, é o que se mostra no âmbito do orçamento dos órgãos públicos. Como é de amplo conhecimento, áreas como a saúde, a assistência social e a educação, entre outras, encontram-se fortemente impactadas pelo ativismo judiciário. Na Saúde, considerando apenas o plano federal, há a estimativa de que os gastos com o cumprimento de sentenças judiciais aumentaram cerca de 1.300% entre 2008 e 2015. A cada ano, o SUS responde a mais de 40 mil novas ações propostas nos níveis federal, estadual e municipal. A maioria delas pleiteia a concessão de medicamentos ou de tratamentos que não estão incluídos na política pública de saúde ou não estão contemplados nos protocolos clínicos. (Esses e outros dados sobre a judicialização da saúde aqui mencionados foram publicados pelo pesquisador Octavio Luiz Motta na “Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos”, em seu volume 10, número 18, e estão disponíveis para acesso online no portal de divulgação científica Scielo). 

Na assistência social, assim como na educação, não é menor o impacto do ativismo judiciário. Um exemplo paradigmático é fornecido pelo caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que foi criado pela CF para garantir renda mensal de um salário mínimo a idosos ou pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade. O acesso ao BPC era concedido até 2013 aos postulantes cuja renda familiar per capita não ultrapassasse ¼ do salário mínimo em vigor. Naquele ano, ao ser provocado, o STF determinou que se flexibilizassem as exigências e estabeleceu que o critério de renda familiar não seria mais o único a ser considerado para a concessão do benefício. Ocorre, entretanto, que a corte não apontou — nem poderia fazê-lo, já que isso está além de sua competência — quais deveriam ser as novas regras. Três anos depois, por meio de decreto, o governo editou nova regulamentação, na qual reafirmou o limite de renda que praticava até 2013. O resultado da disjunção entre Executivo e Judiciário foi a coexistência de duas orientações divergentes, o que aumentou significativamente o número de demandas judiciais para obtenção do BPC. As demandas fizeram com que o percentual de benefícios concedidos judicialmente saltasse de 2,6% em 2004 para 18,6% em 2015 conforme dados divulgados pelo extinto Ministério da Fazenda e hoje disponíveis para consulta online. Na prática, a ampliação do número de beneficiários, embora legítima em si mesma, foi uma esdrúxula política pública definida e implementada pelo STF, órgão do Judiciário que fez o papel de Executivo sem se preocupar, entretanto, com aquilo que o Executivo deve sempre ter em conta: a viabilidade econômico-financeira de cada medida. A mesma lógica se verifica em outras instâncias do Judiciário com as numerosas decisões que determinam a matrícula de crianças e adolescentes em escolas nas quais não há vagas disponíveis sem que se aponte na sentença o modo como tais vagas podem ser obtidas em curto intervalo de tempo.   

Se é certo que assiste aos cidadãos o direito inalienável de pleitear recursos para a recuperação ou manutenção de sua saúde, assim como benefícios para a sua subsistência e escolas e creches para seus filhos, também é certo que, por serem proferidas em caráter individual, as decisões judiciais nem sempre levam em conta — ao condenar prefeituras e governos estaduais e federal — o impacto agregado que os gastos terão sobre a execução orçamentária de cada ente. Assim, para evitar bloqueios e sequestros judiciais, os órgãos gestores de áreas como saúde, assistência social e educação veem-se com frequência compelidos a adquirir produtos e serviços em condições de excepcionalidade. O resultado, muitas vezes, são compras feitas em condições de mercado, sem a vantajosidade de que o poder público poderia e deveria usufruir se houvesse condições normais de aquisição. Assim, se já é difícil manejar o orçamento público, ainda maiores são as dificuldades quando há ativismo do Judiciário. Se não fosse o bastante, como vêm mencionando diversos especialistas, seria preciso lembrar que o alto índice de sucesso dessas ações — pelo menos 50% no caso das esferas municipal e estadual — cria distorções como o efeito “fura fila”, em que alguns usuários, podendo custear advogados, ingressam em juízo para assegurar uma prestação mais rápida dos serviços, produtos e procedimentos que pleiteiam do poder público. Assim, como dano colateral do ativismo judiciário, alguns princípios constitucionais, como o de eficiência da administração pública e o de igualdade de todos perante a lei, são violados por órgãos públicos premidos por decisões judiciais que buscam, paradoxalmente, assegurar outros princípios constitucionais. 

 

Contra a lógica

Além de insegurança jurídica e orçamentária, o ativismo judiciário tem produzido situações que desafiam a lógica. A mais emblemática delas talvez seja a famosa contenda em torno do artigo 52, inciso X, da CF. Trata-se de tema bem conhecido das aulas de Direito em que os calouros são convidados por seus professores a refletir sobre a intrincada arquitetura de poderes contida no texto constitucional. De modo simplificado, pode-se dizer que esse dispositivo declara ser do Senado a competência privativa de suspender a execução de lei que o STF, em caráter definitivo, tenha declarado inconstitucional após avaliar recurso extraordinário. O centro da polêmica, no qual despontou o ativismo, está em um detalhe técnico: trata-se de saber se a lei julgada inconstitucional deixaria de valer para todos, e não somente para as partes envolvidas no recurso, apenas quando suspensa pelo Senado, como diz explicitamente o texto constitucional, ou se bastaria, para tanto, a decisão do STF. Eis que o ministro Gilmar Mendes — relator do recurso em um longo processo que se arrastou entre 2007 e 2014 — sustentou que bastaria a decisão do STF para suspender a eficácia da lei para toda a sociedade, cabendo ao Senado apenas dar publicidade ao que foi decidido. Para justificar seu entendimento, que contraria flagrantemente o texto do artigo 52, Gilmar Mendes saiu-se com a ideia de que esse dispositivo havia passado por uma suposta “mutação constitucional”, fenômeno que ocorreria de modo informal, o que equivale a dizer, embora o ministro tenha silenciado a esse respeito, que não teria parâmetros objetivos para ser avaliado. Como quase tudo no Direito, essa é uma interpretação aberta à dúvida. Não há dúvida, entretanto, em um ponto: ao fazer esse tipo de interpretação, Gilmar Mendes e aqueles que o acompanharam em seu entendimento, entre eles o então ministro Eros Grau, entenderam que o STF, guardião da Constituição, poderia ir contra a Constituição e assumir uma competência que a Constituição, em seu texto original, disse explicitamente ser privativa do Senado. Se isso não for uma interpretação ativista que usurpa competência e implode a separação harmônica de poderes desenhada pelo constituinte, nada mais o será. A título de curiosidade, registre-se que a tese da “mutação constitucional” terminou derrotada na ocasião em que foi proposta, mas voltou a ser discutida pelo STF em 2017, a propósito de outros julgados, desta vez sob o manto da chamada “teoria da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade”, que teve o apoio de Carmem Lúcia, Edson Fachin, Celso de Mello e de Gilmar Mendes. Ainda que se tenha trocado um nome estranho (mutação constitucional) por outro ainda mais estranho (abstrativização do controle difuso), e ainda que alguns doutrinadores tomem essa conceituação jurídica como normal para parecerem atualizados, a volta da ideia de que o STF pode ir contra a CF e usurpar uma competência que nela está explicitamente reservada ao Senado mostra que o espírito ativista está em franca atividade.      

Uma síntese eloquente desse espírito — que no final das contas é também sua justificativa — foi feita pelo ministro Luís Roberto Barroso. Quando sabatinado no Senado em 2013, pouco antes de assumir sua vaga no STF, Barroso declarou que cabe ao Judiciário exercer o papel de “vanguarda iluminista” que “faça a história andar nos momentos em que ela emperra”. Essa expressão não disfarça uma ânsia profunda de protagonismo histórico. Soaria estranha na boca de políticos de uma moderna sociedade democrática, que dispensa condutores e constrói, pelo debate público, as soluções de que necessita. Ainda mais estranha soa quando ouvida na boca de juízes. Afinal, juízes não são uma espécie de aristocracia iluminada pela ciência para guiar a plebe. São servidores públicos que, como todos os demais, devem se esforçar por cumprir de modo diligente o ordenamento jurídico naquilo que lhes compete. Enquanto a ordem política democrática prevista na Constituição estiver a salvo de “mutações” ou de “abstrativizações”, seja lá o que for isso, quem guiará o povo será ele próprio, por meio de seus representantes e administradores eleitos. Se estes forem mal escolhidos nas urnas, o que costuma ocorrer, a solução não estará na instauração da juristocracia que parece ser desejada por alguns iluministas de plantão e sim nos remédios de que o ordenamento jurídico já dispõe. 

 

Cinco ideias

Se teve a paciência de acompanhar até aqui estas reflexões, o leitor e a leitora não encontrarão dificuldade em perceber que elas podem ser resumidas em algumas poucas ideias. A primeira é que a judicialização, como foi desenhada na Carta constitucional, é um instrumento de fomento da cidadania e não um descaminho da vida institucional brasileira. A segunda ideia é que o ativismo do Judiciário, coisa bem diversa da judicialização, como se tentou deixar claro acima, é uma distorção desse instrumento que tem comprometido o equilíbrio harmônico dos poderes preconizado pela CF. A terceira ideia é que o deputado Domingos Sávio, goste-se ou não de sua nova orientação político-partidária, não inventou o ativismo como desculpa para que o bolsonarismo antissistema possa emparedar o STF e corroer o Estado Democrático de Direito. O ativismo existe e tem dado as caras na história desde 1988. 

A essas ideias podem ser acrescidas uma quarta e uma quinta. A quarta ideia é que, no calor de um ano de eleições em que o presidente da República hostiliza abertamente o sistema eleitoral e o STF, pilares da ordem democrática, parece pouco provável que a PEC do Congresso Revisor venha a ser aprovada. Isso soaria, no melhor cenário, como uma tentativa casuísta e, na pior das hipóteses, poderia acirrar os ânimos e levar sabe-se lá para onde o já combalido equilíbrio institucional brasileiro.

A quinta ideia, finalmente, é que os fatos vêm mostrando que, se não for agora, será incontornável que, em um futuro não muito distante, se repactue no Brasil a tripartição dos poderes. O caminho parece ser, como têm apontado alguns juristas e cientistas políticos, o de uma reforma constitucional mais ampla, que promova, entre outros ajustes, maior sinergia entre os atores institucionais, tornando-os solidários quanto aos resultados do que fazem ou deixam de fazer. Talvez seja preciso mesmo convocar uma nova constituinte, como alguns mais ousados têm dito, já que as constituições são o ponto de encontro entre a política e o direito. Para isso, contudo, seria necessária uma tranquilidade institucional que hoje, infelizmente, não parece estar presente no cenário brasileiro, polarizado pela lógica antirrepublicana do “nós contra eles”. De todo modo, e qualquer que seja a amplitude das mudanças a serem introduzidas a bem da vida democrática, continuará a haver a necessidade simultânea de juízes, de legisladores e de administradores públicos. Em nome do povo, de onde emana todo o poder, convém torcer para que eles se entendam.

 

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Márcio Almeida é jornalista, professor e analista político em Divinópolis.

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