De Dandara à Chica da Silva

Em um país extremamente machista, a história não poderia ter outro viés

CHARLES GUIMARÃES

 

Em um país extremamente machista, a história não poderia ter outro viés, a única mulher que realmente é mencionada como a redentora dos negros – ao ponto de alguma veneração – é branca, linda e loira. E para a tristeza de muitos professores, Isabel, a princesa, não estava nem aí para os crioulos escravizados vindos da África. A pressão da Inglaterra para que o país abolisse a escravidão era tão grande que incomodava, chegava até a tirar o sono da filha de D. Pedro II.  Acima, mas muito acima, dos interesses humanitários vinham os financeiros, os interesses comerciais. Açúcar inglês ficava mais caro que o nosso, pois a mão-de-obra lá era paga e aqui era tipo 0800. Os negros aqui ralavam duro só por um pouco de comida, um lugar para descansar o lombo e pronto. Lá em Palmares, Alagoas, alguns desses crioulos não concordaram em trabalhar de graça ou só para encher a pança e dormir um pouco. Reuniram uns parceiros de sofrimento, uns “parça”, e resolveram pela força, já que pela conversa era inviável, acabar de vez com essa mão-de-obra barata. Ganga-Zumba começou o que Zumbi levou a diante. Zumbi dos Palmares não estava sozinho. Sua mulher, Dandara, era uma destas porretas. Sabia jogar capoeira melhor que muito macho, pegava em armas e liderava negras e negros para o combate. E mesmo assim, segundo alguns historiadores, lhe deu três filhos. Quer mais? Era tão destemida quanto o marido e não aceitava qualquer caraminguá pela rendição: a libertação dos escravos era incondicional na pauta de reivindicações. Tanto que preferiu saltar de um precipício a voltar à condição de escrava. Isso tudo no século XVII. Cem anos depois, outra negra veio fazer parte da história deste país escravagista. Chica da Silva era filha de um militar português e mãe negra. Abandonada pelo pai e na condição de escrava cresceu e virou uma dessas negras de parar o trânsito. Tanto que amoleceu o coração do contratador João Fernandes de Oliveira, português responsável pela exploração de todas as pedras preciosas do Tejuco, hoje Diamantina. Alforriada e rica, Chica da Silva abalou a sociedade de então. Queria o mar e João Fernandes deu-lhe o mar, construindo uma imensa lagoa no fundo do casarão onde moravam. Festas e filhos – que com o contratador foram 12 – viveu até aos 60 anos. E foi enterrada dentro da igreja da cidade, privilégio dado só a pessoas brancas. Não fez muito pelos negros, mas mostrou que nesta luta pela liberdade cada um usa as armas que têm. A história não conseguiu capturar a imagem das duas. Não se sabe que aparência tinham. O que importa? Elas eram mulheres e foram protagonistas. Elas eram negras e fizeram acontecer.  Um trinco nos alicerces dessa sociedade de machos. Pontos somados, pela ala feminina, nesta luta pela igualdade total de direitos entre homens e mulheres. [email protected]

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