CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS | CPI da Educação: um balanço até aqui

Na mais completa análise publicada até agora sobre o tema, o colunista sintetiza as oitivas feitas pela comissão parlamentar que investiga suspeitas de superfaturamento em compras realizadas pela Secretaria Municipal de Educação e discute questões que tendem a entrar na pauta dos trabalhos

Márcio Almeida

 

Embora os trabalhos ainda estejam no início, o que traz a possibilidade de novos fatos significativos virem à tona, já se veem resultados palpáveis na atuação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada pela Câmara de Vereadores de Divinópolis para investigar suspeitas de superfaturamento e irregularidades em compras de equipamento e material feitas no ano passado pela Secretaria Municipal de Educação (Semed). 

A segunda série de oitivas de servidores municipais mostrou que já estão delineadas duas linhas narrativas claramente distintas quanto ao principal aspecto analisado na fase atual dos trabalhos da CPI, que consiste em determinar a quem coube a responsabilidade de avaliar a vantajosidade das compras suspeitas de superfaturamento e, portanto, de dano ao erário. 

As duas rodadas de interrogatórios feitas até agora — incluindo a secretária e o diretor de Educação, o secretário de Administração, o procurador e o controlador do município — também já permitem um esboço tanto das tarefas que a CPI tem pela frente quanto de alguns riscos a serem evitados em seu caminho para que chegue a bom termo o trabalho investigativo feito com o intuito de preservar o interesse público.

Narrativas

Uma das narrativas quanto à responsabilidade por determinar a vantajosidade das compras é sustentada pelo secretário de Administração, Tiago Nunes, pelo controlador, Diogo Andrade Vieira, e pelo procurador, Sérgio Mourão. Comparando-se seus depoimentos à CPI, é fácil concluir que eles estão de acordo quanto à ideia de que avaliar a vantajosidade das aquisições feitas compete, em cada caso, à pasta ordenadora da despesa, cabendo aos demais órgãos envolvidos a análise de procedimentos e documentos necessários para que o processo de compra se faça conforme o que preceitua a lei. Também é fácil deduzir que este acordo se justifica em razão da própria natureza do serviço público, pautada em rotinas normatizadas. No caso das compras agora investigadas, a normatização consiste na Portaria 196/2021, da Secretaria de Administração, que regulamenta e padroniza os procedimentos para aquisições realizadas pelas diferentes pastas da Prefeitura de Divinópolis. Redigida com base nas exigências da legislação vigente sobre compras públicas, a Portaria 196 não deixa margem a dúvidas quando se trata de determinar a quem incumbe a responsabilidade pela análise da vantajosidade no caso das compras investigadas: ela é da Semed, cujo setor financeiro, como admitiu à CPI a gestora da pasta, elaborou os orçamentos necessários à pesquisa de preços de mercado para cada item adquirido. 

A propósito, cabe abrir aqui parênteses para constatar que, ao contrário do que especularam alguns usuários de redes sociais nos últimos dias, não há elementos para sustentar que existe uma confusão administrativa entre Procuradoria, Controladoria e Secretaria de Administração no caso das compras sob investigação, assim como não os há para afirmar — como alguns fizeram de modo apressado — que está ocorrendo um “jogo de empurra” entre esses setores. O inverso é verdadeiro: em sua passagem pela CPI, os chefes das três áreas se mostraram coesos no que diz respeito a apontar a quem cabia a responsabilidade pela avaliação de aspectos que impactaram na vantajosidade das compras. Dizer o contrário, dando a entender que há uma confusão ou disputa de atribuições, não corresponde aos fatos efetivamente apurados nas oitivas.  

Contramão 

A outra narrativa sobre a responsabilidade de determinar a vantajosidade das compras é a da Secretaria Municipal de Educação, que vem apresentando várias estratégias argumentativas. A primeira delas, vista nas primeiras oitivas, foi apresentada pela secretária Andreia Dimas. Depois de afirmar que as aquisições seguiram o rito da Portaria 196, a secretária fez desta norma uma interpretação pessoal segundo a qual não lhe cabia, enquanto gestora “técnica”, assim como não cabia à sua equipe “técnica”, qualquer responsabilidade pela avaliação da vantajosidade das compras. Feita e reafirmada durante seu depoimento, tal interpretação choca-se com o entendimento do procurador, do controlador e do secretário de Administração, para os quais a Portaria 196 é explícita ao mencionar a necessidade de que a secretaria ordenadora de despesas realize os orçamentos necessários à determinação da vantajosidade. Uma versão atenuada da narrativa da secretária foi sustentada na segunda rodada de interrogatórios pelo diretor de Educação, Leandro Reis. Em meio a juízos opinativos que ora procuravam mostrar aos vereadores como eles devem conduzir a CPI para evitar exploração política, ora procuravam mostrar ao povo e à mídia como eles devem reagir aos indícios de superfaturamento, a fim de “humanizar” a investigação e não comprometer a comunidade escolar, o diretor substituiu a negação absoluta de responsabilidade que Andreia proclamou na CPI (algo como: “Nós, da Semed, nada temos com a tarefa de determinar a vantajosidade dos itens comprados ou com a de apontar problemas eventualmente verificados a respeito disso”) por uma tentativa de relativizar as coisas (algo como: “Temos a respeito desse aspecto das compras uma responsabilidade conjunta com outros setores”). A diferença é pouco significativa: afinal, tanto a secretária quanto seu diretor querem fazer crer que cabia aos outros órgãos da Prefeitura envolvidos com formalidades do processo de compras analisar problemas detectados quando da análise de vantajosidade que ambos admitem ter sido feita pela própria Semed mediante três orçamentos de preços praticados no mercado para cada produto adquirido. É razoável supor, a partir dos depoimentos da secretária e do diretor, que outros servidores da pasta venham a sustentar a mesma narrativa no caso de serem convocados à CPI.         

Tarefas

Não parece haver dificuldade — a não ser que se faça um imaginativo esforço de interpretação — em ler na Portaria 196 aquilo que ela contém de modo explícito: a Semed, queira ou não a secretária Andreia Dimas, tem responsabilidade incontornável quanto à análise de vantajosidade dos itens que adquire e, portanto, responde por isso como todas as demais secretarias que fazem compras no âmbito da Prefeitura de Divinópolis. Por sua obviedade, tal leitura pode ser dada como pressuposto para as demais tarefas que se põem diante da CPI e que podem ser resumidas em duas linhas de trabalho. 

A primeira consiste em quantificar o possível sobrepreço verificado nas compras feitas pela Semed. A tarefa tem caráter fundamental, na medida em que pode descartar os indícios de superfaturamento ou transformá-los em provas. Desnecessário dizer que a quantificação de um eventual sobrepreço precisa ser feita, em cada item, levando-se em conta valores apurados com cuidado. Trata-se, como sabem os vereadores e todas as pessoas com mínima noção de compras públicas, não só de apontar a discrepância entre o valor cobrado à Prefeitura e a quantidade de matéria-prima e de tecnologia empregada em um produto, mas também, e sobretudo, de determinar aspectos mercadológicos envolvidos nas aquisições. Tais aspectos implicam tanto comparar preços e condições de fornecimento específicas para o setor público, preferencialmente com referência a valores praticados na época das aquisições, quanto entender que, por critérios qualitativos que são determinantes para alguns itens, nem sempre as comparações são possíveis ou exatas. Implicam, ainda, entender que o princípio de vantajosidade, tal como o interpreta a melhor doutrina sobre a legislação que regulamenta hoje as compras públicas, não é apenas, embora seja em parte, uma questão econômico-financeira: ele se abre também a especificidades que buscam determinar tanto o custo quanto o benefício em cada item adquirido.  

A segunda linha de trabalho — na hipótese de a primeira resultar na constatação de sobrepreço passível de dano significativo ao erário — consiste em determinar, da maneira mais detalhada possível, de que modo se chegou à escolha dos itens comprados e, portanto, às atas a que a Semed decidiu aderir no sistema de compra por registro de preços. Nesta etapa, caso a ela se chegue, trata-se de apurar se houve apenas descumprimento de princípios como eficiência e economicidade, que regem a aplicação de recursos pelo poder público, ou se ocorreu também, por qualquer das partes, violação deliberada das condições de comercialização com a finalidade de beneficiar indevidamente interesses não governamentais, o que resultaria em prejuízo aos princípios de moralidade e impessoalidade no trato da coisa pública. Em especial, como já ficou evidente, trata-se de desvendar o critério de escolha da Semed em relação aos fornecedores e aos produtos. Quanto aos fornecedores, será preciso investigar, entre outras peculiaridades, o fato de que alguns parecem manter relações, inclusive no quadro societário, com outros da listagem. Um deles, aliás, negou-se a fornecer informações solicitadas pela assessoria da CPI sem antes ter acesso ao inteiro teor das suspeitas e investigações feitas até o momento. Quanto aos produtos, a tarefa que incumbe aos vereadores é a de determinar a lógica técnica das compras, que é mais complexa do que o diretor e a secretária de Educação tentaram fazer crer em seus depoimentos à CPI. Como se sabe, o chamado discurso da competência técnica, empregado por ambos ao justificar a aquisição de alguns itens sob suspeita, não paira acima das escolhas. Assim, por trás da alegação de que as compras foram técnicas, e necessárias sob este aspecto, está oculta uma sutil mistura entre meios e fins. Tal mistura é típica dos discursos tecnocráticos que buscam legitimar a exclusão autoritária da dimensão político-democrática presente em todos os atos governamentais. É óbvio, mesmo para quem não é especialista ou não tem filhos ainda na infância, que um equipamento pedagógico como o Play Ball — um pedaço de metal e outro de plástico cuja aquisição unitária, por cerca de R$ 10 mil, tem fortes indícios de superfaturamento e de venda artificialmente estimulada — não é a única alternativa possível para trabalhar certos aspectos da estimulação psicomotora dos alunos, cabendo ao gestor e aos técnicos compatibilizar custos e benefícios em cada caso, pois nem o aspecto técnico nem o econômico podem, quando tomados isoladamente, compor a vantajosidade. Afirmar o contrário, sob a alegação de uma competência técnica que não pode ser questionada por suposta falta de opções, é lançar sobre as compras uma cortina de fumaça incompatível com o bom senso, a ética e o interesse público. Verifica-se, portanto, que a CPI precisará forçosamente recorrer a especialistas independentes para entender a lógica técnico-pedagógica das aquisições, partindo-se do pressuposto de que ela exista.  

Riscos

Por fim, mas não menos importante, há dois riscos a serem evitados na condução da CPI da Educação, que são, aliás, os riscos de todo inquérito realizado na esfera do Legislativo. Ambos são bem conhecidos tanto do eleitorado quanto dos parlamentares e dos membros da administração municipal. O primeiro é o de a CPI converter indícios em fatos supostamente provados sem que as provas estejam devidamente arroladas e sem que o devido processo de defesa tenha sido resguardado. Nesse aspecto, convém aos parlamentares ter cuidado para evitar, durante as oitivas, questionamentos que contenham, explícita ou implicitamente, afirmações de irregularidades que ainda estão sob investigação, configurando, portanto, uma estratégia sub-reptícia de induzir conclusões passível de questionamento em sua legitimidade e, no limite, de sua legalidade. O segundo é o risco de se exercer pressão externa sobre o trabalho da CPI, vinda ou de movimentos como o que se postou na Câmara para aplaudir o depoimento da secretária ou de petições públicas que tentaram equivocadamente misturar a investigação com uma avaliação — que obviamente não está em questão na CPI — da pessoa da secretária ou de algumas realizações dela e de sua equipe à frente da Semed. Não se trata de atacar a secretária, como se afirmou de modo um tanto distorcido em algumas falas de internet, pois o instituto da CPI não foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro para atacar agentes públicos nem para desestabilizar governos e projetar oposicionistas em ano de eleição, pois não é de interesse público um governo desestabilizado. Trata-se, isso sim, de avaliar o modo como o dinheiro público foi gasto em compras com grande dispêndio de recursos e, se for o caso, contribuir para que haja reparação a eventuais danos trazidos ao erário. Qualquer tentativa de obstaculizar essa investigação, ou de instrumentalizá-la a serviço de propósitos menores, é antidemocrática e antirrepublicana. 

 

Márcio Almeida é analista político em Divinópolis.

E-mail: [email protected]

Comentários