CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS | A hora de Demétrius, Jaime, Lohanna & Cia

Tende a ser decisivo para o município contar a partir de 2023 com lideranças capazes de construir uma ponte sólida ligando Divinópolis a Brasília

Márcio Almeida

Quem tem boca vai a Brasília em busca de recursos. Esse poderia ser o lema das lideranças políticas que se preocupam em dar a Divinópolis novas perspectivas de desenvolvimento socioeconômico a partir de 1º de janeiro de 2023, quando terá início o terceiro governo do presidente Lula. Quando se levam em conta os parlamentares eleitos em outubro, a configuração política do município mostra facilitadores no nível estadual, como a eleição de Cleitinho Azevedo para o Senado e a de seu irmão Eduardo para a Assembleia Legislativa. Afinal, ambos integram o grupo bolsonarista, que tem afinidade com o governador Romeu Zema, eleito para um segundo mandato, e podem usar isso em favor de Divinópolis. O mesmo, entretanto, não pode ser dito da esfera federal, já que a vereadora Lohanna França, única liderança local eleita para o Legislativo na condição de apoiadora de Lula, vai assumir vaga na Assembleia, em Belo Horizonte, e não no Congresso Nacional.

Dessa circunstância resulta um vácuo de lideranças locais que possam realizar a intermediação política entre Divinópolis e Brasília. Duas questões podem ser levantadas a propósito dessa situação. Uma delas consiste em saber se é relevante buscar uma ponte entre as duas esferas governamentais, tendo em vista que as competências de cada uma delas já estão bem delineadas no pacto federativo trazido pela Constituição de 1988. A outra consiste em saber se Cleitinho no Senado e Domingos Sávio na Câmara dos Deputados podem construir essa ligação entre município e governo federal.

A primeira questão deve ser respondida de modo afirmativo. É, sem dúvida, de fundamental relevância construir e manter uma sólida interlocução de lideranças municipais com Brasília. Para fundamentar essa afirmação, é preciso partir da distinção entre a interlocução rotineira e a que se faz em torno de grandes projetos estruturantes. O primeiro tipo, que inclui a liberação de recursos via lei orçamentária e a viabilização de algumas modalidades de convênios e parcerias, pode ser feito sem dificuldades por oposicionistas como Cleitinho e Domingos Sávio. Afinal, como os demais membros das duas casas legislativas do Congresso, eles dispõem de cotas para emendas parlamentares, parte delas impositiva e, por conseguinte, protegida de dificuldades políticas decorrentes do fato de seus proponentes não integrarem eventualmente a base de apoio ao presidente eleito.

Todavia, a experiência brasileira mostra que o segundo tipo de interlocução política, que se faz em vista de projetos estruturantes de grande porte, não costuma ser viável sem que haja em cada iniciativa as digitais de lideranças com bom trânsito junto ao governo federal. Dois exemplos, relacionados tanto ao passado quanto ao presente, ilustram essa afirmação. No passado, sem o prestígio e o empenho de políticos como o ex-prefeito Demétrius Pereira e o ex-deputado Jaime Martins Filho, não teria sido fácil vencer a concorrência de outras cidades, se é que ela teria sido vencida, e transformar Divinópolis em sede de um campus da UFSJ e de uma unidade do Cefet. No presente, como se sabe, o término do Hospital Público Regional pode até ser assegurado com recursos estaduais, já que Zema recebeu um substancial reforço de caixa decorrente do acordo reparatório firmado com a Vale do Rio Doce em razão do acidente de Brumadinho. Todavia, o custeio da unidade de saúde demandará substanciais investimentos que é incerto obter dos municípios assistidos, pelo menos de início, e que o governador reeleito só garantiu por três anos. Assim, abre-se a perspectiva, ventilada por Lula durante a campanha eleitoral, de transformar a unidade de saúde em um hospital-escola ligado à UFSJ e, desse modo, assegurar aportes regulares de custeio provenientes da esfera federal. Basta pensar na importância social desses projetos de grande amplitude — nenhum deles possível apenas com a liberação de recursos alocados por via de emendas parlamentares impositivas — para constatar o quanto é decisiva a construção de uma sólida e ampla ponte entre Divinópolis e Brasília.

Investimentos

Há mais razões convincentes que recomendam a construção dessa ponte. Algumas estão no desenho constitucional da relação entre as esferas de governo quanto às transferências de recursos, enquanto outras se encontram em perspectivas de políticas públicas que se abrem para o país a partir de 2023. Quanto às transferências de recursos de outras esferas de governo para os municípios, considerando a média brasileira e não apenas o caso divinopolitano, é sabido que as que não dependem de negociação política — as constitucionais e as legais — compõem um montante bem mais expressivo que o das discricionárias, que são negociadas e, portanto, resultantes de alguma forma de intermediação feita por lideranças. Ocorre, entretanto, que parte considerável das receitas municipais provenientes de transferências constitucionais e legais está vinculada a destinações específicas, já que existem no ordenamento jurídico obrigações de investimento mínimo em áreas como educação (25%) e saúde (15%), além de um gasto elevado com a quitação da folha de pagamentos do funcionalismo, cujo montante está frequentemente próximo do teto de 60% das receitas líquidas estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Somando-se a isso uma limitada capacidade de incrementar receitas próprias, decorrente sobretudo da conjuntura econômica atual, marcada por baixo crescimento, chega-se por lógica dedutiva à conclusão de que recursos negociados por parlamentares e lideranças acabam sendo fundamentais para alguns tipos de gasto público municipal, principalmente os que envolvem ações de grande impacto social, como implantar ou ampliar o campus de uma universidade federal ou custear a manutenção de um hospital público regional, para ficar apenas com alguns exemplos mais familiares entre os muitos possíveis de serem lembrados aqui.

Quanto às perspectivas da próxima gestão de Lula, não são menos convincentes as razões que convidam a torcer para que haja boa interlocução política entre lideranças divinopolitanas e integrantes do próximo governo federal. Ainda é cedo para dizer o que será possível fazer a partir de 2023, sobretudo quando se leva em conta que o presidente eleito vai assumir as contas públicas após a caótica gestão de Bolsonaro, que ao longo de seu mandato estourou em R$795 bilhões o teto de gastos fixado constitucionalmente e deixou para o ano que vem um orçamento considerado inviável por todos os analistas dignos de crédito. Não custa lembrar que esse orçamento encurtou a presença do Estado na sociedade ao tirar dinheiro de iniciativas fundamentais para a qualidade de vida da população, como o programa Farmácia Popular, e o redirecionar à concessão dos benefícios eleitorais de curto prazo com que Bolsonaro irrigou o vale-tudo de sua campanha pela reeleição. Contudo, levando-se em conta o que se sabe até o momento das propostas da equipe de colaboradores de Lula, o quadro é promissor. Presumindo-se que a PEC da Transição chegue a bom termo, pode-se esperar que o governo eleito e o Congresso consigam atingir o necessário equilíbrio entre a indispensável responsabilidade fiscal e aquilo que Lula vem chamando — de modo justo e oportuno — de responsabilidade social para com um país onde 33 milhões de cidadãos e cidadãs, muitos deles crianças, têm hoje dificuldade de se alimentar de modo adequado. Na perspectiva desse equilíbrio, já se desenham na equipe de transição novidades para a área de política urbana capazes de impactar diretamente os municípios. O que está sendo discutido até aqui inclui a possibilidade de aportes significativos em habitação, tornando possível uma versão ampliada e mais criativa do programa “Minha Casa Minha Vida”, assim como em saneamento e mobilidade. As três áreas, como se sabe, são ávidas de investimento em quase todas as cidades brasileiras, em especial nas que têm o porte de Divinópolis. Desnecessário dizer que, se é verdade que tais programas deverão ser ofertados a todo o país pelo governo federal, também é verdadeiro que os municípios com melhor trânsito em Brasília tendem a se beneficiar primeiro.

Antipetismo

Vê-se, portanto, que quem tem boca deve ir a Brasília a partir de janeiro de 2023 para defender os interesses de sua terra, o que mostra a fundamental necessidade de interlocução política em favor de Divinópolis. E isso conduz à segunda das questões colocadas no início: Cleitinho e Domingos Sávio, estando no Congresso, podem desempenhar a contento esse papel? A resposta, que passa por uma leitura do quadro político-partidário pós-eleições, assim como por um prognóstico do que virá, indica que ambos podem, por certo, participar desse esforço, sobretudo com emendas parlamentares de cumprimento obrigatório e intermediação de convênios menos complexos. Parece fora de propósito, entretanto, esperar que possam ser protagonistas da negociação de amplos projetos estruturantes para Divinópolis. Para compreender o que conduz a esse prognóstico, é preciso levar em conta que Cleitinho, apoiado ostensivamente por Bolsonaro, e Domingos Sávio, tão entusiasmado agora com o capitão quanto o foi no passado com Aécio Neves, foram eleitos por votos vindos em boa parte do bolsonarismo raiz. Ocorre que o bolsonarismo não é nem pretende ser, como já ficou claro para todos os observadores atentos da cena brasileira, aquele tipo de grupo político cujas bancadas no Legislativo lidam com o governo ao modo das oposições tradicionais. Nesse sentido, as declarações dadas por ambos os parlamentares divinopolitanos nos dias seguintes à eleição de Lula são um sinal claro de que há pouca disposição de diálogo com o grupo do próximo presidente. Na ocasião, nem Cleitinho, nem Domingos Sávio opuseram-se de modo decidido às alegações de fraude feitas sem provas por manifestantes inconformados com a vitória de Lula. E nenhum dos dois saiu em defesa franca do sistema pelo qual eles próprios foram eleitos em outubro. Tendo feito pacto eleitoral com Bolsonaro, entregaram o corpo e a alma ao antipetismo que, como já ficou claro, deve marcar o estilo bolsonarista de fazer oposição na Câmara e no Senado. E não se pode esquecer o fato agravante de que a bancada bolsonarista raiz à qual pertencem os congressistas divinopolitanos não corresponde à totalidade da oposição, que conta também com membros do poderoso Centrão, que em boa parte tendem a apoiar o governo da vez. Esse apoio, aliás, ao contrário do que ficam repetindo os defensores do romântico purismo ideológico, não está errado do ponto de vista da política real, que depende da coalizão de forças partidárias para viabilizar iniciativas governamentais. A aproximação, a propósito, já começou. A julgar pelo que se tem visto no noticiário, incluindo apertos de mão entre Lula e o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, pode-se esperar que seja mantido no ano que vem o mecanismo de emendas de relator do chamado orçamento secreto, que o atual presidente barganhou na surdina com sua base de apoio em troca de Lira engavetar os mais de cem pedidos de impeachment que passaram a ameaçar seu mandato. Como se sabe, tais pedidos proliferaram principalmente a partir da conduta adotada por Bolsonaro na pandemia de 2020, conduta esta, diga-se de passagem, que até o vice-presidente Hamilton Mourão critica hoje de modo aberto. Se esse mecanismo orçamentário for mantido, ainda que com ajustes para ficar mais republicano, o bolsonarismo raiz ao qual se juntaram Cleitinho e Domingos, mesmo numeroso, pode terminar isolado pelo mesmo Centrão do qual Bolsonaro tanto falou mal naquele tempo antes da “gripezinha” de covid-19 em que julgava não precisar de parlamentares para governar. E isolamento, em uma casa política que só funciona à base de abertura para o diálogo, significa limitação das possibilidades de atuação legislativa.

Nem Cleitinho, nem Domingos Sávio parecem, portanto, em condições de assumir de modo minimamente confortável qualquer espécie de interação com o governo Lula que não seja a da crítica contundente e sistemática. No máximo, chegarão ao básico “Se o projeto for bom para o povo, voto a favor”. De todo modo, ainda que quisessem exercer o papel de interlocutores do município junto ao presidente eleito, o que não parece ser o caso, a julgar pelo tom de suas falas públicas no pós-eleição, é duvidoso que o conseguissem dentro da cartilha ideológica do bolsonarismo, que antes da posse já iniciou sua oposição fervorosa ao PT com um pedido de recontagem dos votos do segundo turno. Dando voz a ideias que Bolsonaro difundiu por várias vezes nos últimos anos, o pedido de recontagem repete o gesto de Aécio Neves, que inaugurou no Brasil o hábito de lançar dúvidas quanto à Justiça Eleitoral ao ser derrotado por Dilma Roussef na disputa presidencial de 2014. Anunciado nos últimos dias por Valdemar Costa Neto, presidente do PL de Bolsonaro e de Domingos Sávio, esse pedido, tal como as alegações de fraude nas urnas eletrônicas, é destituído de qualquer elemento substancial de prova ou indício e só é levado a sério nas bolhas de zap-zap ou na turma que fecha estradas e falta ao trabalho ou usa o tempo ocioso da aposentadoria para se aglomerar na porta de quartéis pedindo um golpe contra a democracia. É de dentro dessa turma, uma versão verde e amarela dos trumpistas que invadiram o Capitólio em Washington após a vitória de Joe Biden, que vieram muitos dos votos de Cleitinho e Domingos Sávio. É com eles, por conseguinte, que ambos precisarão interagir ao longo de seus próximos mandatos.

Se há, portanto, pouco espaço político para o protagonismo de Cleitinho e Domingos Sávio na negociação de benefícios para Divinópolis junto ao governo Lula, e presumindo que nenhum dos dois vai se afastar da área de influência do ferrenho antipetismo bolsonarista que os elegeu, é o caso de pensar que ambos vão agir no Congresso como oposicionistas e receber em troca do governo o tratamento dado a opositores. É o caso de perguntar então quais são as alternativas divinopolitanas para construir uma interlocução consistente entre o município e Brasília, capaz de ir além da liberação de emendas e de alcançar grandes projetos estruturantes. É cedo ainda para apontar perspectivas, mas algumas delas já despontam naturalmente no horizonte. Elas gravitam em torno de um grupo de nomes que reúnem tanto a proximidade real com o governo eleito quanto boa experiência na vida pública e capacidade agregadora, três elementos indispensáveis a bons interlocutores. Tais nomes incluem o ex-prefeito Demétrius Pereira, próximo do presidente eleito e bem relacionado com o seu entorno, assim como o ex-deputado Jaime Martins Filho, político de índole pragmática e moderada que, a despeito de ter se aproximado de Zema e Bolsonaro, tem no currículo um bom trânsito com Lula. Embora tenha passado à esfera estadual de atuação nas eleições de outubro, a deputada eleita Lohanna França, que em razão de seu perfil agregador se revelou um nome central na campanha do PT em Divinópolis nos dois turnos de votação, também pode ter lugar nesse arranjo, funcionando como elo entre esses e outros líderes. Não é por acaso, aliás, que Demétrius e Jaime figuram em destaque entre os articuladores que tornaram possível a UFSJ e o Cefet em Divinópolis. Assim, neste país em que alguns preferem agora fazer política fechando estradas, pedindo golpe militar e bloqueando o diálogo, deve-se torcer para que esse grupo de políticos encare a empreitada de abrir caminhos e construir uma ponte democrática que ligue Divinópolis a Brasília.

Márcio Almeida é analista político do Agora e apresenta, no perfil do jornal no Instagram, a videocoluna opinativa “Além da Notícia”, veiculada nas manhãs de segunda, quarta e sexta-feira.

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