Caixa é negligente em imóveis ocupados irregularmente, aponta Ministério Público

Ação quer retomar casas para nova seleção de beneficiários

Matheus Augusto 

Mais de 230 imóveis em três residenciais do programa “Minha Casa, Minha Vida”, atual “Casa Verde e Amarela”, são ocupados irregularmente em Divinópolis. A afirmação é do Ministério Público Federal (MPF), com base na fiscalização conduzida pela Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas). O órgão apresentou, recentemente, uma ação cobrando providências imediatas para que a Caixa retome os imóveis para a seleção de novos beneficiários que se enquadrem nos critérios nacionais. As irregularidades envolvem, por exemplo, locação, venda e abandono.

Segundo fontes do Agora, o deputado federal Domingos Sávio (PSDB), o estadual Cleitinho Azevedo (Cidadania), o prefeito Gleidson Azevedo (PSC), a vice Janete Aparecida (PSC) e o presidente da Câmara, Eduardo Print Jr (PSDB), se reuniram ontem com o superintendente da Caixa para discutir a possibilidade de um acordo quanto à Ação Civil Pública.

Após o encontro, Gleidson Azevedo postou um vídeo em suas redes sociais. Na publicação, ele se defende das críticas que recebeu e diz estar aberto ao diálogo para resolver a situação.

— Diferente daquilo que eles quiseram para a população, essa gestão vai resolver o que não foi resolvido — afirmou. 

A vice-prefeita disse que não dará esperança aos moradores dos imóveis, mas que busca uma solução cabível dentro da realidade. 

— Nossa preocupação é fazer aquilo que é justo dentro da legalidade. (...) Não estamos prometendo nada, mas fazendo o caminho correto — ressaltou.

Já o deputado Domingos Sávio destacou a reunião como produtiva. O objetivo, garantiu, foi discutir a possibilidade de uma solução justa e legal. 

— Não queremos que seja simplesmente retirada uma família de uma hora para outra, mas, por outro lado, tem que resolver a situação —frisou.

Pedido

O procurador da República, Lauro Coelho Junior, justifica o pedido como forma de adotar medidas eficientes e rápidas para a realocação de imóveis irregularmente ocupados nos residenciais Jardim Copacabana, Elizabeth Nogueira e Vila das Roseiras, integrantes do programa “Minha Casa Minha Vida” – Faixa 1. O objetivo é “corrigir uma grave situação que tem causado o desvio de finalidade social do programa, que deve beneficiar as pessoas de baixa renda”.  

O procurador explica que o MPF tomou conhecimento da ocupação irregular dos imóveis em 3 de outubro de 2013, data de instauração de Inquérito Civil para acompanhar a situação. Na época, explica, a Câmara apresentou suas conclusões após montar uma Comissão Especial para acompanhar a gestão do programa “Minha Casa, Minha Vida”.

— Na ocasião, foram constatados indícios de irregularidades na execução do programa federal, consistentes na destinação de imóveis a beneficiários que não preencheriam, em tese, os requisitos para a sua obtenção — detalhou o procurador.

No início de 2014, a Caixa Econômica Federal (CEF) e a Prefeitura de Divinópolis foram oficiadas para esclarecimentos sobre a situação. A Caixa explicou o funcionamento do programa, bem como as medidas que seriam adotadas diante das irregularidades apontadas. Já o Executivo detalhou que o processo de seleção dos beneficiados se dá com base em critérios estabelecidos em nível nacional. 

— Embora a Caixa Econômica Federal viesse adotando medidas quando provocada especificamente sobre ocupações irregulares de unidades residenciais localizadas no Vila das Roseiras, Jardim Copacabana e Elizabeth Nogueira, ao longo dos anos seguintes, continuaram sendo noticiadas novas irregularidades frequentemente — criticou Lauro.

O procurador ressaltou que, novamente, o órgão voltou a verificar o processo de fiscalização adotado pelo banco e reforçou a necessidade de melhorar sua atuação. Segundo informações da CEF, o Residencial Vila das Roseiras, finalizado em 2011, contava com 463 unidades, do Elizabeth Nogueira, entregue em 2012, 463, e do Jardim Copacabana, concluído em 2012, 498.

— [A Caixa] informou que, em relação às ocupações irregulares, conforme dados colhidos em 2016, havia nove denúncias de irregularidades no residencial Jardim Copacabana (todas em apuração), 54 no residencial Elizabeth Nogueira (41 em apuração) e 48 no residencial Vila das Roseiras (todas em apuração). A empresa pública disse ainda que foi estabelecido canal de atendimento para o recebimento das denúncias, com a adoção de providências, através de parceria com o Município, para apurá-las — citou. 

Inspeção pessoal

No pedido, o procurador cita ter ido pessoalmente visitar as três localidades no fim daquele ano (2017). 

— No geral, foi possível observar deficiências de infraestrutura, e, quanto à atuação da CEF, a reclamação a respeito da ineficiência foi uníssona nos três residenciais, sempre se apontando a demora na tomada de providências em caso de irregularidades na ocupação dos imóveis, situação que estimulava as invasões, vendas e aluguéis irregulares — relatou.   

Investigação da Polícia Civil entre os anos de 2013 e 2014 já havia identificado imóveis desocupados e o acréscimo de benfeitorias de padrão elevado, o que evidenciava divergências nas informações prestadas por alguns beneficiários sobre as rendas familiares auferidas.

Depoimentos colhidos também corroboram para a tese que a entrega das unidades habitacionais do Jardim Copacabana ocorreu “sem que fosse exigida a apresentação de documentação comprobatória de renda, tendo sido realizadas consultas apenas aos bancos de dados do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e Relação Anual de Informações Sociais (Rais) para aferição das informações”. Começava, ali, parte do problema.

— Tais falhas evidenciaram que inúmeros imóveis foram entregues a pessoas que não preenchiam os requisitos básicos exigidos pelas normas que regem o referido programa — pontuou o procurador.

Diante dos indícios de fraudes, a Polícia Federal indiciou, na época, 21 pessoas e o MPF propôs ações penais pela prática do crime de falsidade ideológica previsto no artigo 299, do Código Penal, por terem prestado declarações falsas perante a Administração Pública Federal, a fim de se verem inseridas fraudulentamente no programa “Minha Casa Minha Vida”. A Caixa informou que os beneficiários seriam notificados a devolver os imóveis.

Segundo o MPF, “quanto maior era a demora da Caixa Econômica Federal em efetivar a retomada de imóveis ocupados irregularmente, maior era o incentivo para que novas invasões ou cessões irregulares ocorressem”. 

Dificuldades

A notificação de beneficiários que estavam em situação irregular, no entanto, se mostrou um novo problema.  A CEF, apesar de comunicar a criação de um grupo de trabalho para melhorar o processo de retomada dos imóveis, justificou a demora pela ausência de entrega de correspondências pelos Correios no Jardim Copacabana e Elizabeth Nogueira. O ano era 2018. A não entrega “a notificação aos moradores e as conclusões sobre quais ocupações estavam efetivamente irregulares”.

O órgão federal solicitou esclarecimento aos Correios, o qual informou que as duas regiões não atendiam às normas federais para prestação de serviços postais. Posteriormente, a Prefeitura de Divinópolis foi orientada a instalar identificação em locais visíveis nas vias de ambos os bairros. A recomendação foi acatada e, em setembro de 2018, o serviço postal foi iniciado.

Ao longo do Inquérito, frisou o procurador, a Caixa demonstrou ter estabelecido um procedimento “minimamente eficaz para gestão das providências a serem tomadas quando do recebimento das notificações de ocupações irregulares”. Os dados apresentados mostram a queda de pendência em decorrência de notificação e aumento de processos judiciais para reintegração de posse entre 2018 e 2019 (ano em que o número de procedimentos saltou de 55 para 79).

— Além disso, houve o crescimento do número de imóveis reintegrados (de 12 em novembro de 2018 para 27 em junho de 2019) e de imóveis considerados regulares (de 319 em novembro de 2018 para 388 em novembro de 2019) — informou.

Entretanto, após o MPF encerrar o acompanhamento extrajudicial, o problema voltou a se tornar recorrente.

— Passado algum tempo, percebeu-se que, a partir de alterações realizadas na estrutura administrativa da Caixa, o problema das ocupações irregulares voltou a se agravar. Infere-se que a situação possa decorrer de problemas de descontinuidade administrativa no seio da empresa pública, com a reestruturação ocorrida no ano de 2020, que culminou no fechamento da Superintendência Regional em  Divinópolis — cita o procurador.

Fiscalização

O novo desdobramento do caso surgiu neste ano. A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas), em vistorias presenciais realizadas entre fevereiro e maio, encontrou 239 irregularidades. As informações colhidas foram enviadas ao MPF. 

Com base no relatório, das 159 residências do Residencial Vila das Roseiras, 58 imóveis visitados estavam em situação irregular; no Elizabeth Nogueira, dos 160, 70; no Jardim Copacabana, das 193 casas, 111.

— Em suma, os servidores verificaram que havia casas desocupadas, alugadas ou vendidas, casas com moradores diversos dos beneficiários originais e até mesmo imóveis demolidos — afirmou.

A prática de venda, locação ou cessão é proibida antes da plena quitação do financiamento, caracterizando transferência irregular, passível de nulidade. A persistência do problema e o número de casas ocupadas irregularmente motivaram a Notícia de Fato para apurar a questão.

Prejuízo

Novamente questionada, a Caixa se limitou a informar os procedimentos adotados. 

— Informou, ainda, que estavam suspensos os processos de execução por descumprimento contratual, devido à indisponibilidade de recursos para o programa “Minha Casa Minha Vida”.

Assim, entende o procurador, o banco se mostra ciente da situação, mas é incapaz de resolvê-lo.

— Assim, a CEF tem pleno conhecimento de atos ilegais que afetam diretamente uma política pública por ela promovida, que visa minimizar o déficit habitacional, mediante a destinação de imóveis subsidiados à população carente local — afirma.

O agravante, defende, é a lentidão para adotar providências para reaver as unidades.

— Prejudica as famílias que hoje ainda resistem habitando os residenciais, enfrentando invasões por criminosos, e impede que outras famílias sejam beneficiadas com os imóveis que deveriam ter sido recuperados e ainda lesa, evidentemente, os cofres públicos, que custearam um programa que não atende a sua finalidade principal, de proporcionar moradia digna à população de baixa renda — argumenta.

Diante da ineficácia do diálogo, o procurador se viu, então, na obrigação de ajuizar a Ação Civil.

— Os anos se passaram e a sensação que se tem após as últimas informações é de que voltou-se à estaca zero. Alternativa não resta senão o socorro ao Poder Judiciário! — justifica, citando, como base, o interesse público, por se tratar de recursos federais, a proteção do patrimônio público e a defesa do direito à moradia de qualidade.

Providências

O pedido cobra ações da Caixa para recuperar os imóveis nos três residenciais. Segundo o MPF, a Prefeitura tem cumprido sua função, de implementar a política social e fiscalizar.

— No caso, verifica-se que o Município de Divinópolis/MG tem realizado as providências que lhe incumbem, tendo efetuado as fiscalizações nos três residenciais — isenta o procurador.

O principal argumento é de que contratos como locação ou vendas de imóveis do programa são nulos e, por isso, cabe à Caixa recuperar tais residências e promover a seleção de novos beneficiários, que se enquadrem nos critérios de escolha.

— Vê-se, então, que as alienações, por qualquer meio, realizadas em desacordo com essas regras – a exemplo dos contratos de gaveta – são nulas de pleno direito.  

O órgão considera que houve desvio de finalidade em parte das ocupações, cabendo à CEF “adotar os procedimentos legais para cancelar o contrato e repassar a unidade para outra família que estivesse inscrita e selecionada pelo governo, de acordo com as regras do programa”. 

O MPF esclarece, ainda, que o governo federal alterou, no início deste ano, o “Minha Casa, Minha Vida” pelo “Casa Verde e Amarela”. No entanto, mesmo com a mudança, transferir imóveis sem a respectiva quitação continua ilegal.

— Pelos fatos relatados nesta demanda vê-se que o direito de moradia de famílias carentes do município de Divinópolis vem sendo tolhido, usurpado por oportunistas – ou pessoas em situação de alguma vulnerabilidade social – que vêm alienando unidades imobiliárias de forma irregular, dando destinação diversa aos imóveis e até mesmo os abandonando, em total contrariedade aos objetivos do MCMV — explica o procurador.

O abandono, cita o documento, também pode ser passível de reintegração de posse, por descumprimento da função social da propriedade, prevista no artigo 5º, XXIII, da Constituição Federal. 

— Dessa forma, considerando que a inspeção in loco realizada pela Semas identificou um total de 239 imóveis com possíveis irregularidades nos três residenciais do MCMV, faz-se necessária a apuração pela Caixa Econômica Federal, com a maior brevidade possível, e adoção das medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis, caso sejam confirmadas as ocupações irregulares. Para tanto, não resta outra opção que não a judicialização da questão, considerando que todas as tentativas possíveis para solução extrajudicial do problema já foram adotadas pelo Ministério Público Federal — cobra o órgão.

O processo da Caixa é descrito como inerte e moroso, “em evidente descumprimento das suas responsabilidades”.  

A Ação Civil também cita a preocupação com a consolidação e o aumento das ocupações irregulares.

  Enquanto a requerida permanece inerte, diversas famílias de baixa renda poderiam estar sendo beneficiadas com tais moradias, de onde se extrai a urgência na recuperação desses bens e em sua correta destinação. (...) Desse modo, cumpridas devidamente e em prazo breve as obrigações da requerida, diversas famílias de baixa renda poderão ser beneficiadas, obtendo seu direito fundamental à moradia.  

Solução

Ao fim, o MPF solicita o recebimento da petição inicial, a convocação da Caixa para audiência de conciliação, o deferimento da tutela de urgência (caso a conciliação não tenha resultado) e o julgamento de procedente do pedido para a tomada de medidas definitivas e a fixação de multa diária para a ré em caso de descumprimento da liminar. O objetivo é que a CEF apresente um cronograma detalhado com a adoção de medidas para apuração e retomada dos imóveis ocupados de forma irregular em tempo ágil, bem como a escolha de novos beneficiários. O documento é assinado pelo procurador da República, Lauro Coelho Junior.

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