[CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS] Em memória do ‘Muy Amigo’ Jô

Como milhões de brasileiros, o colunista tem o humorista, apresentador e escritor como parte de seu patrimônio afetivo

Márcio Almeida

Tendo passado algum tempo tentando definir para alunos e alunas a importância de Jô Soares para a cultura brasileira, assim como o tamanho de sua perda, cheguei a uma fórmula ao menos razoável. Acho que posso dizer, sem exagero, que, para quem tem 40 ou mais, Jô era nos anos 80 e 90 como o tênis All Star, a Legião Urbana ou o chiclete de caixinha. Podia ser visto, ouvido e saboreado em quase todo lugar. Era tão onipresente que fazia parte da paisagem cotidiana da adolescência e da juventude. E quando os adolescentes e jovens adultos amadureceram, passou a fazer parte da sua memória afetiva. É por isso que sua morte aos 84 anos, na semana passada, causou em nós, já entrados nos “enta”, não só uma inevitável tristeza como também um compreensível vazio.

Respeitadas as proporções, é como se a perda de Jô tirasse um item do patrimônio cultural de cada um e cada uma de nós, que por tantos anos o vimos nos programas humorísticos, em que seus mais de 250 personagens desfilavam refinamento e audácia ao tratar do que estivesse ocorrendo de relevante no momento, e nos talk shows da TV aberta, nos quais reinventou o gênero no Brasil a partir de 1988, abrindo caminho para o formato dos podcasts, que agora difundem o perfil de entrevistador que não precisa fingir ser discreto. E muitos — que, ao contrário de mim, puderam ver Jô no palco — ainda poderão lembrá-lo como um dos precursores do moderno stand up brasileiro e um dos mais inventivos diretores do nosso teatro de comédia.

Para mim, em especial, além do humorista que bem antes da onda politicamente correta inventou um personagem para combater a homofobia, o Capitão Gay, e do apresentador cuja presença de espírito salvava as entrevistas quando o entrevistado travava, fica a figura do músico apaixonado por jazz, que criou um charmoso sexteto para animar seus programas e assim ajudou a popularizar o gênero no Brasil. E fica a obra do escritor capaz de produzir crônicas criativas e saborosas para a mídia e romances inteligentes e divertidos como “O Xangô de Baker Street”, pós-moderna mistura de ficção e história que junta, no Rio de Janeiro do século 19, a figura do imperador Dom Pedro II à do personagem inglês Sherlock Holmes.

Ator, diretor, produtor, roteirista, humorista, músico, cronista, romancista, apresentador, show man: isso tudo era Jô Soares. Nascido rico, ele trabalhou muito em tudo o que decidiu fazer. Sem diploma superior, foi mestre em várias áreas. Próximo dos poderosos, nunca deixou de afrontar o poder, como nas cartas abertas que enviou ao atual presidente para ironizar arroubos contra a democracia. Gordo, inventou a militância antigordofóbica na mídia brasileira ao tematizar e encarar o próprio peso, com o qual viveu em paz. Já idoso, manteve a curiosidade de aprender. Gostaria de que meus alunos e alunas descobrissem essa biografia inspiradora. E gostaria de que nossa educação produzisse mais multitalentos como Jô Soares. Gente assim faz falta.

Márcio Almeida é jornalista, analista político e fã de jazz, de programas de entrevista e de gente multitalentosa como Jô Soares.
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