[CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS] Em defesa de “Virgin River” e dos que querem morar lá

Considerações sobre os românticos e sonhadores fãs da série da Netflix que virou fenômeno de audiência no Brasil

Márcio Almeida

Os indivíduos da espécie homo sapiens se classificam em duas categorias: os que assistem e os que não assistem à série “Virgin River”, da Netflix. Foi isso que escrevi nesta semana em um story que motivou algumas respostas de amigos e conhecidos enviadas por redes sociais. Parte das manifestações veio dos que, como eu, integram a primeira categoria. Outra parte, em menor quantidade, é a dos que, não gostando da série, consideraram descabida a importância que dei a ela em minha brincadeira classificatória.

Na opinião destes, “Virgin River” seria, no máximo, entretenimento romântico e escapista que não propõe, afinal de contas, nenhum daqueles questionamentos profundos sobre a vida humana típicos das obras de ficção com “F” maiúsculo. Para essas pessoas, aliás, a série não passaria da transposição para as telas de um best seller recheado de clichês. Não discutirei com os críticos de plantão. Quem sou eu para pôr em dúvida a liberdade de avaliação estética em matéria de crítica literária e cinematográfica?

Não vou, portanto, defender, “Virgin River” da chuva de críticas que alguns estão fazendo cair sobre a ensolarada série da Netflix. Vou defender o direito de alguém comer pipoca, sentar-se no banco da praça, assistir a uma partida disputada por seu time preferido ou jogar conversa fora com os vizinhos. Vou defender essas e outras coisas que, como “Virgin River”, são prazerosas para muitas pessoas mesmo sem propor a elas alguma espécie de questionamento profundo sobre o sentido da existência humana.

Além de propor a ideia radical de que ninguém deve ser obrigado a passar cada minuto diante de um livro ou de uma série mergulhado em suas profundidades existenciais, vou propor o não menos radical entendimento de que as pessoas, mesmo que já tenham passado da infância, têm direito a histórias cheias de fantasia. E vou recomendar aos críticos que procurem entender o papel decisivo que a fantasia tem na vida dos indivíduos da espécie humana, gostem eles ou não de “Virgin River”.

Cabe aqui uma explicação, embora pessoal, do meu ponto de vista. Desconfio de que a vida tem duas fases. Na juventude, buscando compreender o mundo e descobrir o nosso lugar nele, nós nos esforçamos por ser mais críticos e olhar a realidade afastando dos olhos qualquer coisa que lembre o encantamento da infância. Na fase madura, depois dos quarenta e de outros “enta”, trata-se de reencantar a vida e ressignificá-la para além das inevitáveis frustrações do caminho. Eis o papel da fantasia.

E “Virgin River” é boa nisso. Os mais jovens podem achar o enredo monótono, mas nós, nem tão jovens assim, tendemos a ver com bons olhos coroas que recomeçam a vida, pessoal ou profissionalmente, depois dos 50 ou 60. E que mal há em um pouco de romantismo sentimental em torno do casal de protagonistas? Isso por acaso mata? Penso que não, assim como penso que é uma pequena luz que brilha sobre a vida de quem já amou, desiludiu-se e está tentando voltar a crer no amor.

Sei que alguns dirão que a série tem, ao lado da fantasia romântica, um retrato da vida humana que é irreal, assim como é irreal, ainda que deslumbrante, a geografia da história. Devo discordar. De um lado, é verdade, como uma amiga me disse, que não há na Califórnia uma cidade chamada “Virgin River”. Nem por isso vejo problema: primeiro, porque uma obra de ficção pode inventar lugares e, segundo, porque as locações de “Virgin River” de fato existem, como me disse minha amiga, só que na Colúmbia Britânica, no Canadá.

De outro lado, digo que há, sim, realidade nos episódios. Além de colocar coroas e idosos em cena, procedimento que passa longe de muitas séries ditas realistas, a vida mostrada na pequena cidade fictícia não é perfeita: lá estão mulheres que morrem de câncer, crianças que ficam sem suas mães, idosos com temperamento difícil, violência associada à família, problemas trazidos por atividades ilícitas, injustiça e uma série de outras questões que podem ser facilmente identificadas por quem assiste à série.

Imagino que outros ainda dirão que, apesar de algum realismo na composição de personagens e situações, a série propõe um tipo de vida comunitária que já não existe nem no interior. É verdade que é utópica essa comunidade em que os vizinhos se mobilizam para ajudar quem precisa de ajuda. Mas quem disse que esse espírito comunitário é menos interessante por isso? Utopias, senhoras e senhores críticos, são paradigmas morais. Não precisam ser alcançados, como já lembrava Platão: servem para nos manter caminhando.

Essa me parece ser, aliás, a melhor parte da série e uma das grandes justificativas de seu sucesso. “Virgem River” criou uma ambiência em que nós, habitantes do individualista século 21, projetamos nossa carência de sentido comunitário. Nada mais reconfortante do que ver nos episódios eventos aos quais a pequena comunidade comparece em peso, como o baile anual feito num pitoresco celeiro em estilo rústico e um divertidíssimo Dia do Lenhador, que mereceria ser recriado na realidade.

E isso não é tudo. Repito o que disse no story sobre a série. “Virgin River” é para mim, além de entretenimento com belas paisagens e de uma utopia inspiradora de vida comunitária, uma reconfortante manifestação de solidariedade estética. Onde mais, pergunto a você, leitor ou leitora, seria possível encontrar gente que, como eu, passa o ano todo usando botinas de couro e blusas xadrez? Peço licença, pois, aos críticos realistas, mas devo prestar minha solidariedade àqueles que têm a compreensível vontade de ir morar em “Virgin River”.

Márcio Almeida Júnior é professor, analista político e fã assumido de blusas xadrez, botinas de couro, árvores, rios e montanhas.

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