[CRÔNICAS DEMOCRÁTICAS] Bilhete a um Jovem Senhor

Márcio Almeida

Cumpro o prazeroso dever de informar que minha descendência aumentou. Além das irmãs Ana Sofia e Ana Júlia e de Pierre - todos brasileiros, solteiros e felizes, residentes e domiciliados no litoral do Espírito Santo – tenho agora entre os netos o recém-chegado Nathan. Depois de 9 meses de viagem, percorridos sem grandes turbulências, ele aterrissou em Vitória, capital capixaba, no início da noite de 29 de julho. Embora ainda não o tenha visto de perto, fui informado de que chegou com 3,535 quilos de bagagem. Por hora, pelo que consta, Nathan dispensa o uso de cabelos, segundo a tendência minimalista atualmente em voga, e divide seu precioso tempo entre o leite e o sono, que são, pelo que tudo indica, as duas palavras de ordem da sua filosofia de vida.

Nascido em um clã em que senhoras e senhoritas empoderadas são maioria democrática, Nathan é um bocejante fruto entre as mulheres. Eis a sua genealogia: é filho de Gabriela, que é filha de Ana Paula, que é filha de Nira, que é filha de Dadi. Com nome e calvície de profeta bíblico, embora sem as longas barbas judaicas, Nathan também é filho de David. Favor não confundi-lo, leitor ou leitora, com aquele profeta Nathan que no Antigo Testamento orientou David, o rei, a manter-se no caminho do bem. (Neste caso, com a devida licença bíblica, David é que vai orientar Nathan). Também não se deve confundi-lo com aquele Nathan interpretado por Tom Cruise no longa-metragem “O último samurai”, embora pareça haver entre os dois o amor pela disciplina: Nathan, o capixaba, vem apresentando intestinos capazes de funcionar a cada três horas com regularidade de relógio suíço.

Por enquanto, Nathan tem preferido manter silêncio. A bem da verdade, desde que desembarcou ele só abre a boca para degustar sua bebida láctea predileta. Demonstrando uma precoce vocação meditativa, tem mantido também os olhos fechados e assim aparece nas fotos que já circulam em redes sociais. Não sabemos, por conseguinte, o que Nathan tem a nos dizer sobre a inflação que elevou o preço dos combustíveis, da energia elétrica e das fraldas descartáveis, assim como ainda não temos noção de como ele vê a guerra na Ucrânia ou as cólicas no intestino.

Até segunda ordem, portanto, para nos comunicarmos com Nathan devemos considerar suas feições e expressões. Nas feições, em primeiro lugar, destaco a cabeça. Nathan descende, pela linha paterna, dos Kuster, alemães que se estabeleceram na região serrana do Espírito Santo e lá, com suas casas de madeira e sua fé luterana, ajudaram a fundar cidades pitorescas como Afonso Cláudio. Isso, acredito, explica alguma coisa germânica no formato da cabeça de Nathan. Como se vê em uma das fotos que aqui aparecem, é uma cabeça cujo perfil ficaria bem naquelas medalhas que, segundo os livros de história, celebravam o reinado do velho kaiser Guilherme II. O ar germânico, como o leitor e a leitora haverão de convir, é reforçado pelo tom da pele, que, de tão clara, parece ser do tipo que se torna cor-de-rosa com 30 segundos de sol. Quanto às expressões de Nathan, sustento a tese de que elas também têm lá suas alemanices. Em uma de suas poses para as câmeras, reproduzida aqui, vê-se com clareza aquela cara reflexiva de quem pensa com profundidade sobre as abstrações da razão pura de Kant ou, talvez, sobre as sutilezas da fenomenologia de Hegel ou de outro dos pensadores que a Alemanha deu ao mundo.

Ninguém pense, contudo, que Nathan é um germânico que só por acidente veio ao mundo nos trópicos. Nada seria mais equivocado do que essa suposição. Apesar do crânio de imperador do século 19, da pele rosada e da expressão às vezes distante de quem se ocupa de sutis filosofias alemãs, Nathan é brasileiro, aliás brasileiríssimo. “Ora” — direis, leitor ou leitora — “por certo perdeu o senso quem, depois de tanto germanismo, vem agora falar em brasilidade”. E eu vos direi, no entanto, que é incontestavelmente brasileiro esse sorriso que se vê em outra das fotos aqui mostradas: um sorriso de quem, sabendo-se o centro das atenções, aproveita malandramente a situação para mostrar seu charme tropical.

Tão ensolarado e convidativo é esse sorriso brasileiro que vou me animando às futuras conversações. Já me vejo falando a Nathan sobre a amorosa admiração que desde sempre me desperta o velho Rubem Braga, seu conterrâneo capixaba, insuperável cronista das coisas líricas. Também me vejo, como mineiro, recomendando a Nathan que, ao visitar o lado alemão da família, dê atenção aos belos morros da região serrana, cobertos ainda de árvores e passarinhos aos quais envio a minha melhor saudação.

E mais eu diria, com a doce língua da imaginação, se não fosse tão curto o tempo para tão grande vontade de recepcionar o mais novo membro desta minha crescente descendência espalhada entre mar e montanha. Assim, até que chegue o dia do encontro, improviso com palavras um colo quente e macio e o envio em um bilhete voador. Conduzida pelas asas de dois anjos da guarda, um alemão e outro brasileiro, que a minha mensagem de boas-vindas vá de Minas ao Espírito Santo em um milésimo de segundo e, lá chegando, sopre de leve sobre a testa de Nathan as seis palavras que bastam, por enquanto, para a nossa plena comunhão: “Gott segne dich: Opa liebt dich” ou, em bom português, “Deus te abençoe: Vovô te ama”.

Márcio Almeida, jornalista e analista político, é avô de Ana Júlia, Ana Sofia, Pierre e, agora, de Nathan.
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