‘Absolutamente inconstitucional’, afirma especialista sobre projeto de linguagem neutra

Advogado atuante há 23 anos na área explica pontos controversos da proposta Eduardo Azevedo; vereador garante legalidade

Bruno Bueno

A aprovação do projeto de lei CM 118/2021, de autoria do vereador Eduardo Azevedo (PSC), que proíbe o ensino da linguagem neutra nas escolas de Divinópolis, gera imensa repercussão em toda a cidade. A discussão da proposta levou mais de 150 pessoas à Câmara na última quinta-feira, 16, quando foi aprovada por 14 votos a um.

No entanto, mesmo com a aprovação quase unânime do projeto, profissionais e especialistas do direito estão apontando algumas irregularidades sobre o conteúdo. O advogado especialista em direito público, mestre e doutorando em direito constitucional e professor universitário Jarbas Lacerda, atuante há 23 anos na área, disse ao Agora que considera o projeto absolutamente inconstitucional.

— O legislador e o povo precisam saber que o processo educacional deve estar aberto para a discussão de ideias. Não é necessário adotar a pauta, mas pelo menos colocá-la em discussão. As escolas discutem isso no plano pedagógico. Quando você coloca uma lei que restringe a liberdade das escolas de tratar os conceitos é inconstitucional — explicou.

Constitucional

Antes de apresentar as irregularidades, o advogado detalhou os artigos da Constituição Federal que, na sua opinião, apresentam contradição com o projeto de Eduardo Azevedo (PSC).

— O artigo 205 da Constituição Federal diz que a educação é de todos, dever do estado e da família. Ela deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno exercício da pessoa para a cidade. Quando a gente vai para o artigo 206, no inciso 2º, que diz sobre a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, encontramos o principal problema do projeto. No inciso 3º, que fala sobre o pluralismo de ideias e condições pedagógicas, também existem diversas contradições — salientou.

Jarbas também lembrou, por meio de outro artigo da Constituição, que o Município, por meio da Câmara, não tem competência para legislar sobre o ensino educacional de Divinópolis.

— Tem outro detalhe importante: o Município não detém competência para elaborar leis tratando sobre as diretrizes e bases da educação. Segundo o artigo 22, por meio do inciso 14, da Constituição Federal, só a União pode legislar sobre esse tema —  afirmou.

Limitação

Ainda segundo o advogado, a pauta apresentada pelo vereador limita o que pode ser ensinado em sala de aula. Ele voltou a reforçar que a educação tem parâmetros nacionais que devem ser seguidos.

— O projeto quer estabelecer uma limitação. A exclusão de qualquer tema ou análise educacional sobre o desenvolvimento da sociedade importa na limitação da liberdade de ensinar e aprender e do pluralismo de ideias. Há uma diferença entre promover uma discussão sobre concepções sociais e fazer opções nas escolas sobre a adoção ou não desses conceitos. A educação tem parâmetros nacionais, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) 9394/1996 — disse.

Jarbas Lacerda finalizou dizendo que considera muito provável a implantação de uma ação que aponte o projeto como ilegal.

— É possível que haja uma ação direta e que essa lei venha ser declarada inconstitucional. É muito provável que aconteça por meio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) — argumentou.

Comissão de Justiça 

O Agora procurou os vereadores membros da Comissão de Justiça da Câmara que analisaram e consideraram o projeto constitucionalmente apto para a votação. A reportagem tentou contato com Rodrigo Kaboja (PSD) e Israel da Farmácia (PDT), mas não obteve resposta. O secretário Hilton de Aguiar (MDB) disse que não falaria sobre o assunto e sugeriu que a reportagem buscasse a Procuradoria-Geral da Câmara. 

No entanto, este contato já havia sido feito com o procurador geral da Casa, Bruno Cunha Gontijo. Ele se limitou a dizer que todo o pronunciamento da pasta sobre o projeto se encontra no parecer jurídico.

Parecer

O parecer enviado, ao qual o procurador se refere, foi entregue à Comissão de Justiça no dia 13 de setembro de 2021 e assinado pelo procurador-geral, e vereadores membros garantiram que não havia irregularidades e contradições do projeto com a Constituição.

No entanto, o mesmo parecer afirma que o projeto pode ser considerado inconstitucional se, como alega o advogado Jarbas Lacerda, controlar a liberdade do professor na sala de aula.

— Neste contexto, se revelada uma intenção, ainda que velada, de criação de mecanismos de controle a ser exercido sobre a liberdade do educador no âmbito da respectiva sala de aula, o projeto de lei apresentado incorreria em inconstitucionalidade, a par do decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por ocasião dos julgados acima referenciados — detalha o parecer.

No fim da justificativa, o documento afirma que a decisão não deve ser resolvida na Comissão de Justiça, mas, sim, em votação no plenário da Câmara.

— (...) Implica dizer que a questão, por uma regra de respeito aos valores também constitucionais do direito ao devido processo legislativo e à democracia representativa, não deve ser resolvida no âmbito restrito do pensamento dos membros de apenas uma Comissão Parlamentar, senão pelo Plenário desta Casa Legislativa — enfatiza.

Contra

Outro órgão que se posicionou contra o projeto foi o Conselho Municipal de Educação (CME). Segundo os membros, a pauta fere a liberdade de expressão e do aprendizado.

— O Conselho Municipal de Educação conclui que o projeto é contra a Lei Orgânica do Município, não condiz com o propósito de defesa do direito de aprendizagem da Língua Portuguesa na sua integralidade, fere princípios constitucionais como liberdade de expressão e, se aprovado, dificultaria a significativamente o processo de comunicação inerente ao processo de ensino aprendizagem. Desta forma, o voto é pela reprovação incondicional do objeto de análise — pontuou.

Lohanna França (CDN), única vereadora a votar contra o projeto, disse  que se baseou seu voto no parecer do Conselho.

— Como presidente da comissão de Educação eu entendo que eu preciso conversar com quem está na ponta, que são os professores, representados pelo Conselho Municipal de Educação (CME). O meu parecer contrário vem a partir de um posicionamento desfavorável do CME. É importante que as pessoas saibam que esse projeto é inconstitucional — ressaltou.

Justificativa

À reportagem, o vereador Eduardo Azevedo (PSC), por meio de sua assessoria, reforçou que o projeto é juridicamente correto.

— No que se refere à competência municipal para legislar sobre a matéria, o projeto está amparado no artigo 30, incisos I e II, da Constituição Federal, tratando-se de matéria de interesse local e de suplementação da legislação federal e da estadual cabível. A mesma previsão pode ser encontrada na Constituição Estadual, em seu artigo 171, II, “c”, que fundamenta a competência municipal para legislar sobre educação — afirmou.

 Eduardo também criticou o parecer contrário da Comissão de Educação. Segundo o vereador, nenhum professor tem liberdade para “ensinar erroneamente" em sala de aula. Ele voltou a reforçar que não existe linguagem neutra.

— As objeções apresentadas pelo parecer da Comissão de Educação da Câmara não prosperam. A liberdade de ensinar do professor é um valor e deve ser respeitada, especialmente no que tange à didática, à metodologia e afins, mas não pode ser considerada absoluta. Nenhum professor tem liberdade para ensinar equívocos em sala de aula. A Língua Portuguesa tem normas que devem ser respeitadas. Não existe linguagem “neutra” ou “não binária” na norma culta da língua — alegou.

O vereador finaliza sua justificativa dizendo que o projeto não tem o intuito de perseguir a classe de professores que, segundo o parlamentar, são, em maioria, contra a linguagem neutra. A pauta teria a intenção de garantir os princípios e valores constitucionais, como a educação de qualidade e a dignidade dos alunos especiais.  

— Neste sentido, o direito do aluno ao aprendizado das normas gramaticais e da língua culta se sobrepõe a uma suposta liberdade do professor, pois o foco da educação não é o professor, mas o aluno. Há que se ressaltar que a esmagadora maioria dos professores é contrária à chamada linguagem neutra, razão pela qual é mentirosa a alegação de que o projeto tem como intuito perseguir essa nobre classe — finalizou.

 

 

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