Violência e razão

Domingos Sávio Calixto 

O colonialismo perpétuo produz dependência dos indivíduos. Essa dependência é constituída pela chamada violência onipresente, aquela que se instala reduzindo o próprio ser humano ao “território explorado”, feito uma colônia ambulante, tal qual a metropolização do eu contra a colônia do outro. Trata-se da violência onipresente.

A metropolização de um corpo sobre o outro se dá pela personalização do belo, do culto, do bom, do sagrado, do trabalho e até do jurídico metropolitano – a “elite de bem”. É evidente que a matriz é eurocentrista e ela atua em moldes de feudalização da razão e da vassalagem da emoção, ao redor do castelo do iluminismo que os hierarquiza.

Ela (a metropolização)  se introduz pela razão do senhor do feudo ao catequizar que “é desumano ser violento diante da violência”.  Por outro lado, é metropolizado que a violência do senhor é racional, bonita, heróica e, como tal, legítima.

Os mitos dela (a metropolização) incutem sistemicamente que a violência feia produzida pelo escravo é covarde, excesso das emoções não civilizadas, animalescas, que é um retorno ao seu estado natural, é atavismo e instinto: é, pois, desumano ser violento. 

Nesta sistematização contraditória que as colonizações foram obras de grandes liberais e iluministas, intelectuais, artistas, filósofos, todas como selo de legitimidade, enquanto “a barbárie capitalista que assume forma respeitável nas colônias, também desfila nua pelas metrópoles”. Assim, na colônia o “colonizado de si” não pode ser violento. É pecado ou crime.

Essa é a violência onipresente, exatamente aquela que condena o oprimido que reage e, sob esse aspecto, é a desumanização no seu aspecto mais brutal e resultante na neutralização do humano como “coisa”, suprimido de consciência de oprimido.

Ora, um país genocida se diz chocado com que tipo de violência? Um país em que a elite, principalmente latifundiária, nunca foi desarmada. Um país que elimina, graciosamente, mulheres, negros e favelados em modalidades oficiais de jogos mortais!... E não se tratam de falhas históricas que, algum dia, “com a graça de Deus”, serão corrigidas.

Da mesma forma é violento um sistema jurídico que reduz com intimidações as reações individuais – que são facilmente criminalizáveis – para neutralizá-las. Sem embargo, quando o debate chega ao uso da violência, aí também chegam os apelos à busca do entendimento, ao diálogo intersubjetivo (...).

O liberalismo é um reino mítico e mentiroso. É nele que a violência onipresente contra a classe baixa assume particularidades respeitáveis, mas vinda do colonizado vai desfilar nua, grotesca e criminalizante. É isso, pois, que sobrou da escravatura, da inquisição, da ditadura, ou seja, tudo, menos a escravatura, a inquisição e a ditadura. Mas há uma distinção: o alvo está concentrado de cima para baixo e com os olhos nas costas da história, uma visão para violência passada e a costumeira cegueira para a atual: favelas, presídios, guetos, Guantánamo, Faixa de Gaza. 

Ao longo da história foi assim, as reações violentas à violência onipresente foram discursalmente submergidas à barbárie. Enquanto o liberalismo filosofal alardeava  declarações democráticas, também sentava-se sob a escravatura e sob a supremacia racial “Jim Crow" e o racismo mundo afora. É o mesmo fenômeno o qual se estendeu da própria declaração universal da ONU, em 1948, enquanto os signatários galantemente exploravam a África.

Esta é o colonialismo perpétuo – um conjunto de monumentos e documentos que mantêm a exploração – feita pelo explorador.

É assim, mas não sempre será.

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