Uma estética para viver

Domingos Sávio Calixto

Crepúsculo da lei

“Só o que é profundo ama a máscara”

-Nietzsche
Este artigo vai se valer de três pequenos textos. Vejamo-los:

1º. “Houve dois momentos em que a luta do bolchevismo contra os desvios “esquerdistas” de seu próprio partido adquiriu dimensões particularmente consideráveis: em 1908, em torno da participação de um “parlamento” ultra-reacionário e nas associações operárias legais, regidas pelas mais reacionárias, em 1918 (paz de Brest), em torno da admissibilidade desse ou daquele “compromisso’’. Em 1908, os bolcheviques “de esquerda” foram expulsos de nosso partido, em virtude de seu empenho em não querer compreender a necessidade de participar num “parlamento” ultra-reacionário. Os “esquerdistas, entre os quais havia muitos excelentes revolucionários que depois foram (e continuam sendo) honrosamente membros do Partido Comunista, apoiavam-se, principalmente, na feliz experiência do boicote de 1905.”

2º. “Em suma, não discuta muito com os judeus sobre artigos da nossa Fé. Eles foram criados, educados no ódio contra nosso Deus. Não há outra esperança de eles, algum dia, aceitar Cristo como Messias, senão pelo cansaço do sofrimento, dom desespero. Por ora é cedo discutir com ales, além de inútil. (...) Porém não vamos falar com os judeus, mas dos judeus e seus procedimentos, para que os alemães os conheçam. Eles têm grande motivo para vangloriar-se desmesuradamente! Afinal são os Bem-nascidos deste mundo! Nascidos de Abraão, Sara, Isaac, Rebeca, Jacó e mais...“Nós, (Goiym) pagãos, aos seus olhos, não somos gente, apenas pobres vermes, indignos de ser por eles considerados, pois não somos da sua estirpe de sangue nobre, do seu povo, de sua descendência!...”

3º. “Porque vocês são carne da nossa carne, sangue do nosso sangue!. Meus jovens alemães, após um ano tenho a oportunidade de vos dar as boas vindas. Aqueles que estão aqui no estádio são um pequeno seguimento da massa que está lá fora por toda a Alemanha. Desejamos que vocês rapazes alemães e garotas absorvam tudo o que nós esperamos da Alemanha para estes novos tempos. Queremos ser uma nação unida, e vocês meus jovens, formarão esta nação. No futuro não desejamos ver classes e vocês precisam impedir que isto apareça entre vocês. É apenas o seguimento das massas e vocês precisam ser educados para tal. Queremos que estas pessoas sejam obedientes e vocês devem praticar obediência. Desejamos que as pessoas almejem a paz, mas também sejam corajosas. E vocês alcançarão a paz.”

O trecho do primeiro discurso foi extraído do livro de Vladimir Lenine, líder da revolução russa, de 1920: Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. O trecho do segundo discurso foi extraído de um livro de Martinho Lutero, líder da reforma protestante, de 1543: Dos Judeus e suas Mentiras. O trecho do terceiro discurso foi extraído de uma palestra de Adolf Hitler, líder da Alemanha nazista durante a 2ª. Guerra Mundial. Foi proferida em 1934 para uma plateia de 20000 jovens reunidos em um estádio.

Ora, o primeiro texto foi uma crítica de Lenine à “esquerda” e suas práticas na época. Significa que, ao contrário do que se imagina, o líder comunista não era “de esquerda”.

O segundo texto refletia grande ódio aos judeus, e foi proferido por uma dos maiores religiosos tementes a Deus de todos os tempos.

O terceiro texto foi dirigido aos jovens alemães, educando-os para a paz, mas foi proferido pelo grande protagonista do nazismo.

O que se conclui, portanto, é que todo texto tem seu contexto. Um texto fora do contexto é pretexto. E pretexto para muitas coisas na medida em que, desgarrado de suas circunstâncias, gera uma estética do simbólico que pode libertar, mas também perseguir e escravizar.

A mesma obra escrita que liberta, pode também espoliar. A mesma bíblia ou constituição que protegem, podem igualmente oprimir. Assim, em nome dos direitos humanos se mata, se humilha, países são atacados, pessoas são torturadas e minorias são flageladas expondo do ser humano aquilo que de mais cruel existe dentro dele.

Não. O ser humano não pode ser tomado, formado ou ideologizado por um texto solto, mesmo porque a letra mata e é o espírito que (a) vivifica.

Domingos Sávio Calixto é professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade Pitágoras, doutor pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA)

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