Onde o caos reina

Domingos Sávio Calixto

 

CREPÚSCULO DA LEI – ANO III – CXII

 

Onde o caos reina

 

Dois Estranhos” (2020) é um curta-metragem de 32 minutos, dirigido por Travon Free e Martin Roe, indicado ao prêmio “Oscar”2021, que pode ser assistido pela Netflix. Fala sobre racismo.

Evidentemente que por se tratar do tema racismo vai partir (!) da dicotomia envolvendo um negro e um branco, como se as cores tivessem o poder da separação de pulmões, mas a questão transcende as duas personagens centrais para parir a matriz cósmica que engole o cármico e vomita o vale da sombra e da morte, onde se deve ter medo, muito medo.

Há que se ter medo do ser humano, até os deuses têm. Seguramente o ser humano é o repositário-mor da maldade, ao ponto mesmo dele – ser humano – inventar o “bem” para bem exercer docilmente a maldade que em si habita, na sua mais pura essência.

Decorre disto a invenção suprema: deuses criados à sua imagem e semelhança. É o homem dando forma à terceirização da maldade, expondo o que de mais tenebroso se lhe tem. Assim, da boca do homem vem o verbo que fala do bem e do mal para o outro – sempre o outro - principiando a “palavra” que autoriza a expiação e o encaminhamento aos infernos, obra suprema do supremo bem.

Sob esse aspecto o inferno é o grande ego humano, atormentado, doloroso, um desassossego de recalques. Eis, pois, os recalques malignos que geram demônios e que fazem o corpo padecer em nome do sagrado: as genitálias e a cor da pele.

Assim, “Dois Estranhos” traz o demônio preto – poderia ser o demônio feminino – que vai ser perseguido pelo anjo branco. O demônio preto veste amarelo, a cor do otimismo (?) e o anjo branco veste o uniforme da vigilância, então ambos expostos ao cósmico que engole o tempo e o espaço em sua infinitude despalavrada.

O negro – como demônio de alhures – é constantemente perseguido e morto pelo anjo branco do aqui e agora. O alhures do negro é uma imensidão candente de chagas persecutórias de muitos Jós, devorado eternamente pelos Leviatãs de uniforme, o policial que o persegue, o Estado que dele se alimenta.

A perseguição ao negro impede o oxigênio da dúvida: Morrer? Dormir? Talvez sonhar? Não adianta. O espírito do eterno retorno guarda a missão perpétua de ser homem caído desde a desobediência do Éden, em face despreparo perante a árvore do conhecimento.

Todas as vezes que o policial mata o negro na película é a maldita árvore dando seus frutos, tantos Cains quanto Abéis forem necessários para que a jiboia da maldade contorne, iluda e inunde os galhos da alma humana.

O anjo da expulsão é o mesmo anjo do uniforme, que é o mesmo que estava presente na Babilônia, em Sodoma, em Salem, em Auschwitz, na Faixa de Gaza, em Canudos, em Carajás, no Carandiru ou Mineápolis. É o anjo da morte do Estado que aponta sua espada para demônios de cor, de sexo, sem fala e pouca fé.

Cada mesmo negro morto no filme é um tormento. O Estado mata pelo homem, em nome do homem e o objeto do desejo é sempre virgem, insuficiente e insaciável. Por isso o amarelo veste o êxtase da aniquilação. O anjo exterminador veste uniforme e cumpre a regra de eliminar a vida indigna de ser vivida.

É como se o corpo branco decifrasse sua branquitude devorando corpos negros, ignorando que corpos são o que são, todos. Um ritual imaginário de salvação de si pelo extermínio do outro, um aborto social do fruto proibido.

O que o negro busca no filme? Acordar ou ressuscitar? Voltar ao barro ou ir para a luz? Uma alma ou um corpo? 

Tudo reclama a imperfeição da criatura que se posta no solar da criação. A dor não está em ser negro ou branco. Afinal o que é isso, negro ou branco se não um corte na vergonha de ser humano?

Ao final a dor maior é a dor de ser humano imperfeito, é o peso do barro que se parte quando aproximado por demais da luz e do calor.

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