O ‘mimimi’ que mata

OAB

O ‘mimimi’ que mata 

Recentemente, após perder uma aposta, um cantor de uma dupla sertaneja vestiu a camisa de um time rival no futebol. Durante uma live, fez diversos trejeitos imputados como “estereótipos de gays”, se desculpando depois, dizendo ainda que sentia saudade de quando podia “dar opinião”. Dentro do maior reality show do país, outro cantor sertanejo, também em total desconhecimento (ou ignorância mesmo), manifestou diversos comentários homofóbicos em um programa que tem como audiência milhões de pessoas. A filha do dono de uma emissora de televisão do país, em seu programa aberto para toda a população, despejou uma avalanche de barbaridades e desrespeito, pedindo às pessoas “LGBTYH” (foi assim mesmo que ela disse) que tenham paciência, pois ela não sabia como explicar “isso” para os filhos. 

Em contrapartida, um jovem homossexual foi estuprado e brutalmente violentado, tendo tatuadas em seu corpo palavras pejorativas de violência ao público LGBTQIA+ em Florianópolis. No Maranhão, somente em 2020, foram registrados mais de 12 assassinatos de pessoas LGBTQIA+. O Brasil segue como o país que mais mata transexuais no mundo. As notícias não param por aí: poderíamos elencar, por horas, dias, todas elas, que estão disponíveis para todos, basta “dar um Google”. 

Logo, o “mimimi”, como muitos chamam, banalizando e zombando da luta das pessoas LGBTQIA+, não se trata apenas de uma brincadeira, tampouco de uma piada. “Nossa, o Brasil está muito chato: não podemos nem fazer mais piadas com bichas, boiolas, gays”, diz uma das falas ouvidas ultimamente. Não, não pode. Porque enquanto banalizamos comportamentos como esse, pessoas LGBTQIA+ estão morrendo por serem tratadas como sem importância, como motivo de piada. 

O direito segue em pequenos passos rumo às garantias fundamentais da população LGBTQIA+, tendo um Poder Judiciário atuando como Legislativo, em razão da omissão dos legisladores, absurdamente escancarada no que diz respeito aos direitos da população LGBTQIA+. Todo e qualquer projeto que vise assegurar direitos encontra resistência por bases conservadoras que deturpam todos os pontos de discussão, contribuindo para a disseminação de notícias falsas sobre a população LGBTQIA+. 

São direitos a conta-gotas para a população LGBTQIA+. Uma hora, o nome social, noutro momento, a união civil, depois a criminalização da homofobia: sempre o Judiciário cuidando para que seja assegurado o mínimo de dignidade para todos esses cidadãos ‒ que são pagadores de impostos e sujeitos de direitos como todo e qualquer outro ‒, mas ainda a passos muito lentos e sempre depois de muita luta. A situação se torna ainda mais grave quando temos estampado na Carta Constitucional que todos são iguais perante a lei, sem distinção. Não, não somos todos iguais perante a lei. Se existe uma utopia, estamos diante dela. 

Proponho um exercício de empatia: já pensou você ter que justificar a todo momento o porquê de você ser heterossexual? Já pensou ter que lutar para ter o seu nome aceito ao apresentar o seu RG, sem ter todas as pessoas te constrangendo? Já pensou ter que ir para a escola e temer ser agredido em razão de um comportamento que não é considerado socialmente aceitável? Sair na rua e ser agredido por apenas ser você? Ser motivo de chacota em programas de TV ou qualquer outro meio de comunicação? Tem mais: já pensou ouvir líderes religiosos a todo momento dizendo que você é uma aberração, que Deus não te ama e que você tem cura? Andar pela rua e ser um alvo ambulante de pessoas maldosas, que sequer te conhecem? Ou ser atacado gratuitamente em suas redes sociais, com ameaças de violência e/ou morte, por você ser você? 

A população LGBTQIA+ vive à mercê da aprovação da sociedade em todos os sentidos. Sempre carecem de autorização para exercer direitos inerentes a todos os cidadãos. Preconceito não é opinião. É falta de respeito. É negligência. É coisa de caráter. No mês em que se comemora o orgulho LGBTQIA+, ainda temos que combater todo e qualquer tipo de homofobia. Não podemos coadunar com “brincadeiras” e “piadas”, se elas são construídas sobre séculos de discriminação. “Ah, mas eu não sou homofóbico, eu até tenho um amigo gay...”, “Nossa, mas não precisa disso, né, sair de mãos dadas em público...”, “vocês não acham que estão pedindo demais?!”, “hoje é tudo um ‘mimimi’, não se pode falar mais nada...”.

Bem… O que não pode é desrespeitar o próximo. Não, não se pode falar nada se o que se fala pode culminar na morte do outro. Não se pode falar, se o que se fala discrimina o outro. Não se pode falar, se o que se fala é falado sem conhecimento. Em uma sociedade tão perversa, seria possível trabalhar a empatia e o respeito, sem precisar de uma tutela jurisdicional para assegurar o que deveria ser óbvio? Encerro com esse questionamento e deixo a reflexão para o ilustre leitor. Homofobia, transfobia, bifobia: isso não é opinião. A queixa das vítimas não é “mimimi”. Homofobia é crime e, como tal, coadunar com tais práticas é ser cúmplice. Bem melhor que o ódio é uma boa dose de amor. Já dizia um grande sábio: amemos uns aos outros. Se um dia formos incapazes de amar, que ao menos respeitemos uns aos outros.



Flávio Vaz – Advogado, doutorando e mestre em direito, professor universitário. E-mail: [email protected] 

 

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