Reportagem especial: Juntos há cinco anos, moradores de rua esperam o primeiro filho

Marília Mesquita

É nos cruzamentos das ruas Moacir José Leite com Divino Nunes Faria, no bairro Bom Pastor, e embaixo da estrutura de madeira e plástico, que ele mantém o colchão que divide com a esposa, Cleicelmar de Paula, 38 anos, que está na 23ª semana de gestação. E também com o cão, Negão, que os acompanham pelos cinco anos que dividem a vida.

Além da barraca, que é uma referência a origem indígena de Cleicelmar, parecida com uma oca, há também o mínimo para que eles possam ter conforto: um tapete e uma poltrona; um sofá improvisado (feito com pedras e tecido); um fogão à lenha (construído com tijolos furados); panelas e uma pequena mesa de madeira; um quadro pendurado; e um jardim de inverno, do qual Silvano se orgulha muito:

— Como pode eu conseguir pegar tanta coisa bonita na rua e transformar nisso, não é?! Mas fui jardineiro por 18 anos e me considero um paisagista — justifica.

 (Des)Amor

 O casal está instalado em Divinópolis há aproximadamente três meses.

— Eu não me importo muito com isso, meu caminhar é pra frente e um dia após o outro —enfatiza Silvano.

Antes de vir para cá, eles estava em Juatuba. Cidade a 70 km de Divinópolis, e é lá que fica a casa que Silvano deixou para trás quando resolveu ganhar as ruas.

— Saí de casa porque minha mulher me traiu. Depois de 22 anos de casado fiquei sabendo que ela me traía pela minha filha. Todo mundo sabia, só eu que não. Então eu quis matar ela, mas Deus me abençoou e eu resolvi colocar o pé na estrada — revela.

Agora, ele volta à cidade vez ou outra para visitar os filhos. 

— Ela foi morar com o camarada, então deixei a chácara para os meus filhos. Hoje ficam quatro filhos na casa e têm outros que são casados. Tenho 11 filhos, sete com essa mulher que fui casado e outros quatro que tive na minha juventude. Agora tem esse que está vindo —explica.   

Natural de Feira de Santana (BA), Cleicelmar vivia em Ponte Nova, na Zona da Mata mineira, a 290 km de Divinópolis. Mas abandonou a cidade e a vida que levava quanto teve uma crise depressiva. Segundo ela, ficou acometida da doença após a morte do marido.

Decidiu enfrentar a dor dela na rua. Então  encontrou Silvano, quando estava de passagem por Itaúna (a 50 km), quatro meses depois que ele saiu sem rumo.

 — Meu marido morreu com AVC, depois de 13 anos casada, então eu saí andando pelo mundo a fora. Minha família não me aceita porque eu gosto de beber [ela não se considera alcoólatra, já que consegue ficar três ou quatro dias sem beber nada]. Mas depois que eu saí andando encontrei o Silvano e deu certo: a gente casou em Água Limpa dos Antunes, zona rural de Caratinga ( a 455km) — esclarece Cleicelmar.

 Lixo 

— Casamos só nós dois mesmo. De boca a boca, sem nenhuma testemunha nem nada. Ela me considera e eu considero ela. Ela não me trai e eu não traio ela — conta Silvano.

Juntos desde que assumiram a rua como casa, as dificuldades são experiências que também resolveram assumir juntos.

— Às vezes a gente vive melhor que muita gente. Mas somos muito discriminados. Vê a gente aqui e acha que somos lixo — fala Cleicelmar.

 Mas eles aprenderam que a experiência na rua é aprendizado para que possam assumir a liberdade que prezam.

 — Nós que moramos na rua tem que conviver com tudo isso. O que eu estou aprendendo na rua não é à toa: eu precisava passar por isso. A rua não é para qualquer um. A rua não é minha, nem de ninguém, mas tem uns que querem ser donos dela. ‘Noiado’ já chegou aqui querendo abrir minhas panelas e pegar comida. A melhor escola que já tive é a rua — confidencia.

 Em Divinópolis, eles alegam estar proibidos de entrar na rodoviária. O estabelecimento público está há alguns metros do barraco que construíram e é lá que eles costumavam comprar cigarro e buscar água.

— Eu quero fazer essa denúncia: os chefões lá proibiram a gente de chegar lá. Agora os seguranças não deixam nem a gente entrar. Me jogaram no chão e, por isso, estou com a boca machucada. Colocaram laser na minha barriga e bateram no meu marido — diz Cleicelmar.

Pública 

A assessoria de comunicação da prefeitura alega que a Rodoviária é pública e não há nenhum tipo de proibição. Mas, no quarto mês de gestação, ela fala que foi esse o motivo que a levou para o hospital há duas semanas.

 — Eu fiquei com tanta raiva do que fizeram que passei mal. Eu estava no banheiro do supermercado, quando comecei a sangrar. Os Bombeiros tiveram que vir e e me levar para o hospital — detalha.

Com o pedido de ultrassom em mãos, conta que apesar de não fazer o pré-natal, nem possuir qualquer tipo de acompanhamento, está tudo bem com o bebê.

— Lá fez um ultrassom também e está tudo bem. Ele só está com as perninhas cruzadas. Então ela pediu que eu fizesse outro ultrassom, então tenho que ir no posto de saúde — completa.

 Felicidade

 O bebê ainda não tem nome e eles também não pensam muito sobre o futuro.

 — O bebê vai nascer e a gente vai cuidar: eu e ele — simplifica Cleicelmar.

Assim, Divinópolis está sendo a casa deles hoje, mas, para eles, o amanhã é guardado por Deus.

— Só Deus é que sabe. Eu sou um jardineiro, pode colocar um projeto na minha mão que eu executo. Mas se eu vou voltar a ter uma casa ou profissão, só Ele é quem sabe. E também não tem uma hora de ir embora de onde a gente está, quando um carreto aparecer, à gente vai. Só que pra levar nós tem que levar o cachorro e nossas coisinhas: para todo mundo pode ser lixo, para nós tudo é riqueza. Isso aqui é nosso palácio — finaliza Silvano.

Porém, ao falar de felicidade, Cleicelmar tem um sorriso no rosto e o olhar fixo:

 — A gente é feliz, mas fora as brigas, né? É que eu morro de ciúme dele, ele é muito bonito —conclui.

 

Comentários