Do pacto narcísico da branquitude

Domingos Sávio Calixto - CREPÚSCULO DA LEI – XCVIV

Parece que eclodiu como “modismo macabro” o fato de agentes (de segurança?) de shopping centers atacarem pessoas negras, seja expulsando-as, lesando-as, torturando-as, ou mesmo matando-as. Os episódios de vitimização dos afrodescendentes se avolumam em conúbio com uma indiferença torpe e plácida, covardemente ocultada no escroto discurso de que “não existe racismo no Brasil”(...).

Ora, curiosamente os senhores de escravos do século XIX – quando o racismo foi inventado pelo cientificismo eugênico – diziam a mesma coisa, enquanto seus “crioulos” sangravam na ponta do chicote do capataz. A mesma coisa também diziam os signatários originais da carta das nações unidas (1948) que “declarava” a existência de direitos humanos universais, enquanto eles mesmos espoliavam, exploravam e assaltavam o continente africano resumindo-o em apenas dois países – Egito e Nigéria – sobrando o restante para os criativos empreendimentos da branquitude eurocêntrica.

Nesse sentido é absolutamente simbólico que tais agressões – terrorismo mitigado – continuem se perpetrando, afinal, é um conjunto estético perfeito para o modus magnus vivendi atual, o qual reúne satisfatoriamente o símbolo do capitalismo, seus protetores e seus “agressores”, ambos recolhidos na mesma classe social, ou seja, policização, criminalização e vitimização como fenômenos estrategicamente imiscuídos na mesma classe conflitante para o gozo medonho das redes sociais.

Ora, o shopping center é o locus de exposição do homo consumens (lo sciame inquieto dei consumatori...). É nesse espaço por excelência que o TER supera o SER. Sim, é no shopping que o espécime consumidor é glorificado aos altares dos deuses da compra, pois é tendo que se recebe, sendo “natural” que as divindades econômicas retribuam a visita aos seus oráculos com a devida satisfação.

Torna-se, pois, patético que os deuses do mercado não reconheçam os escravos em seus domínios. Não importa a época, serão sempre escravos para esses deuses e eles – os escravos – foram excluídos do pacto narcísico da branquitude ao pé da árvore do “cidadão de bem”. Não serão bem-vindos e nem haverá redenção alguma para os descendentes de Cam.

Assim, não há nada mais narcísico que deuses que fazem a criatura à sua imagem e semelhança, confundindo a própria criatura quanto aos limites que estabelecem a tal semelhança. Daí, se a semelhança é a produção da igualdade, fica claro (?) que os claros tomaram a semelhança para si e evangelizaram pateticamente sua própria branquitude como divina em rituais, quadros, imagens e práticas de inferno-paraíso patéticos. 

Talvez seja por isso que a branquitude disponibilize a imaginária espada de fogo do arcanjo à fantasia dos seguranças de shopping, aos moldes mesmo do ato da expulsão. Afinal, eles estão resguardando o Éden das árvores da boa compra, pois os deuses brancos e dos anjos brancos não toleram aqueles que não foram convidados. Bem-aventurados os chamados para o banquete das ofertas, pois deles é o reino dos cartões de crédito. 

(*)  Volto em janeiro, 2021. Abraços.

 

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