Crepúsculo da lei

Democracia nossa de cada dia: salvai-nos de nós!

“O castigo dos bons que não fazem política é ser governados pelos maus“

-Platão

SÓCRATES (470 a.C.- 399 a.C.) foi condenado ao cometimento de suicídio, morrendo aos 71 anos de idade em Atenas, berço da democracia ocidental.

Na época, as acusações contra ele eram vagas - nem ele, nem os jurados, as entenderam muito bem – mas, fato é que elas tratavam em linhas gerais de duas condutas: desrespeito aos deuses e corrupção da juventude.

Foi nesse contexto que, quando das exposições orais – acusação e defesa - em praça pública, os quinhentos jurados convocados para o julgamento optaram por condená-lo, conforme a tradicional contagem de pedrinhas depositadas e contadas em distintos tachos de barro.

Não há como refletir sobre a morte de Sócrates sem que a democracia também o seja para tal convocada, afinal a morte do maior filósofo grego se lhe é debitada com profundo ressentimento desde então.

Em se tratando de uma democracia exponencial, o primeiro ressalte ao episódio envolve sua própria coerência. Ora, se Sócrates exercia seu direito de pensamento e expressão no espaço democrático – polis – seria racional que aquela democracia - orgulho ateniense - admitisse e respeitasse tal conduta.

Não ocorreu. Era uma democracia frágil. Não só frágil como viciada e eivada de interesses políticos notadamente desprovidos de qualquer simpatia por Sócrates.

Entretanto, para além das acusações vagas e até mesmo para além da própria condenação que, absurdamente, aconteceu, há outra consideração importante: o que levou Sócrates a aceitar a morte?

É sabido que, pelas leis da época, ele poderia ter escolhido seu próprio castigo. Escolheu, por ironia, ser indenizado pelos serviços prestados à Atenas. Claro que teve seu pedido negado, afinal os tais serviços prestados à Atenas eram exatamente aqueles que o levaram a condenação.

É que Atenas não entendeu, mas caiu na dialógica de Sócrates: um raciocínio que a fragilizou e desmontou sua proposição acusatória ao devolvê-la em uma vergonhosa contradição.

Além disto, Sócrates poderia ter aceitado o exílio. Diversas cidades, inclusive inimigas, queriam recebê-lo, mas ele não aceitou. Amava Atenas e, fora os casos de guerra, nunca havia saído de lá.

Sócrates também poderia ter optado pela fuga da caverna onde se encontrava detido. Os amigos o teriam auxiliado e nenhum guarda oporia forte resistência. Todavia, ele considerava que era algo absolutamente vergonhoso e incoerente.

A questão, portanto, era: Sócrates queria levar sua crítica à democracia ao extremo, ao preço de uma (sua) vida pela razão.

Ele não aceitava o modelo democrático naquilo mesmo em que ele se mostra até os dias atuais: conceber vitória àquele com melhor retórica e melhor convencimento público.

Era inconcebível para Sócrates que o governante não fosse escolhido pela sua sabedoria e virtudes. E como (com) prova, lá estava ele sofrendo as consequências da mera retórica e do convencimento público, pagando com a própria vida.

Mas, para tal, Sócrates não temia a morte.

Acreditava na alma imortal e no valor de suas ideias, as quais o tornariam igualmente imortal. Além disto, sua racionalidade foi capaz de inserir nas estruturas democráticas um estigma de injustiça latente o qual, inelutavelmente, teima em assombrá-la pesada e constantemente.

O episódio socrático - há 2.400 anos – tal como maldição de um oráculo, mantém o assombro do cometimento de incontáveis injustiças sob o discurso da ordem pública e democrática.

Ainda se verificam pessoas presas mediante acusações infundadas, não explicadas e não demonstradas, bem como há pessoas que insistem em confrontar a democracia pela razão democrática, pois o resto não importa.

São pessoas que viveram pela democracia e morrerão por ela.

Enfim, se for mesmo maldição grega, acautelemo-nos. Que as deusas da vingança não nos atinjam!

Domingos Sávio Calixto é professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade Pitágoras, doutor pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA).

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