CREPÚSCULO DA LEI – XXI

Minha arma, minha vida! 

No dia sete de maio foi assinado o Decreto 9.785/19, estabelecendo novas regras para a aquisição, posse e porte de armas de fogo por aqui.

Trata-se de um decreto relativamente extenso por conta de seus sessenta e sete artigos, dezenas de parágrafos, mais de uma centena de incisos e alíneas, todos debruçados na tarefa de alimentar o senso comum com uma pulsão de ataque travestida de legítima defesa, em conúbio com um mal esclarecido cumprimento de promessa a um dos mecenas da campanha vitoriosa.

De início ressalta-se no texto do decreto a ampliação das possibilidades de porte aos advogados, jornalistas, fazendeiros, colecionadores, atiradores, caçadores e outros mais, estabelecendo a redução dos critérios subjetivos e evidenciando critérios mais objetivos quais sejam: estar na lista, inicialmente.

A norma mantém a exigência dos antecedentes, do trabalho definido, da residência fixa, bem como dos exames psicológicos específicos e do comprovante de curso de tiro em entidade credenciada.

Ocorre que o objetivo aqui é uma breve análise de um artigo específico do decreto: o de número trinta e seis, parágrafo sexto da respectiva norma, segundo o qual os menores de dezoito anos estão autorizados ao tiro desportivo, desde que autorizados por um dos responsáveis. Sim, apenas um.

A questão é tormentosa por diversos fatores, notadamente por estar lidando-se com pessoas em formação, motivadas muito mais pela potência dos hormônios que a idade festivamente lhes contempla e, exatamente por isso, consideradas pela lei penal brasileira pessoas não culpáveis, inaptas a receberem penas, ou seja, inimputáveis.

Ora, não existe correspondência analógica desta condescendência sequer na lei de trânsito, sendo necessário o adolescente aguardar a maioridade para matricular-se em curso preparatório a fim pleitear posterior habilitação que o considerará motorista.

Sem embargo, não há como esquecer que o tal artigo permissivo fala em dezoito anos, mas não menciona a idade mínima. Se analogia couber, o Estatuto da Criança e do Adolescente menciona que criança é a pessoa considerada aos doze anos completos.

Nesse sentido abre-se a possibilidade da criança e do adolescente ingressarem em clubes de tiro desportivo, adiantando às pequenas pessoas o sentido da defesa e do preparo para elas ao longo de sua experiência de vida. Enganam-se.

Nem os contados meses de serviço militar na intimidade com armas – um ano – são capazes de certificar o preparo devido à plena defesa dos mais diverso ataques possíveis que a empreitada da vida oferece. Nenhum instrutor poderia atestar isto, nem mesmo nenhum instrutor é dotado de tal magnitude.

Todos os esforços são tentativas de minimização de riscos, nada mais que isso e, provavelmente, a mais eficaz opção seria mesmo evitá-los, não provocá-los. É sabido que os riscos existem na plenitude. Vive-se claramente numa sociedade de riscos. Os riscos estão por toda parte. A ideia de aproximação com as armas de fogo faz exatamente o que agrada aos deuses do perigo, ou seja, sua antecipação e chamamento.

Provavelmente o decreto abordado estará estimulando diversos instintos ainda não muito bem definidos, mas seguramente o de defesa será o menor deles. Já é sabido e por demais dito que, desde o século X com a invenção da pólvora pelos chineses, bem como seu posterior aproveitamento industrial e mercantil na dinamite por Alfred Nobel no século XIX, e ainda com as reflexões de Clausewitz em seu livro Da Guerra (1832) deixam claro o seguinte: armas de fogo servem para o ataque!

Dar às armas de fogo um utilitarismo defensivo corresponde a uma função derivada, não original. Isso se comprova até no próprio texto do antigo e também festejado: pessoas com quatro armas de fogo estão pensando em se defender? E atualmente: um adquirente de uma pistola ponto quarenta e cinco quer se defender de quê?

É claro que são reflexões bastante breves, mas suficientes para tomar por bastante temerária a aproximação de crianças e adolescentes ao discurso bélico, principalmente pela contundente sensação de angústia (?) da espera, de um longo tempo de expectativa para adquirir sua (própria) arma: somente aos vinte e cinco anos. Uma conivência preocupante entre datas.

Bom mesmo seriam taxas de desemprego bem, bem menores, ou a gasolina pela metade do preço.

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