Caso Acid: deu a louca no prefeito?

Há mais coisas no episódio do pedido de prorrogação do vencimento do IPTU em Divinópolis do que supõe a polêmica das redes sociais

Quando se escrever a crônica da Administração Gleidson Azevedo, será necessário mencionar o dia 10 de fevereiro entre os mais decisivos do primeiro ano de seu mandato como prefeito. Foi nesse dia da semana passada que teve lugar, no Centro Administrativo, sua agora famosa conversa com a presidente da Associação Comercial, Industrial, Agropecuária e de Serviços de Divinópolis (Acid), Alexandra Galvão. Registrada em vídeo, a conversa teve uma de suas partes extraída por um editor não identificado e posta em circulação nos últimos dias tanto em veículos de mídia quanto em redes sociais.
Como se viu, o que sobretudo motivou o interesse da mídia, inclusive a estadual, e de muitas outras pessoas não foi propriamente o teor das medidas solicitadas pela Acid como forma de ajudar os empreendedores divinopolitanos a enfrentar o prejuízo decorrente da pandemia de covid-19, entre elas a prorrogação em seis meses do prazo para o início do recolhimento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de 2021, como feito em Belo Horizonte e alguns outros municípios de Minas e do Brasil. O que chamou a atenção e mereceu notícia e comentário foi a resposta do prefeito. Ela teria sido uma negativa quase protocolar — pois a Prefeitura já tinha enviado resposta fundamentada à Acid —, não fosse pela expressão popular “Você está louca?”, empregada por Gleidson ao se referir à proposta de dilatação do prazo para a quitação do IPTU.

O que veio depois é conhecido de quem acompanha as notícias locais: uma sequência de opiniões, dadas em redes sociais, sobre o uso da conhecida expressão idiomática. Tais opiniões empregaram adjetivos que vão do “inadequado” ao “desrespeitoso”, passando por considerações de feição identitária sobre a necessidade de se evitarem falas que desprestigiam e desempoderam mulheres enquanto gênero. Não retiro nenhuma vírgula do discurso feito pelos que defendem a necessidade de uma linguagem menos informal para a discussão de temas de interesse público e lembram que é conveniente ao chefe do Executivo tratar a todos do modo mais respeitoso possível. Mas não é desse ponto, já muito discutido, que desejo tratar aqui e sim do que o episódio ensina sobre a política local, tanto no nível da sociedade quanto no do governo, o que passa, naturalmente, pela discussão do mérito das medidas solicitadas pela Acid.

Dos projetos às polêmicas

Quanto à sociedade, o episódio ensina que em Divinópolis, como infelizmente ainda ocorre em muitos outros locais, a polêmica com frequência cresce tanto que engole o espaço de discussão de projetos e ações, inclusive os de grande impacto social. Um exemplo: o secretário de Obras e Planejamento, Will Bueno, deu uma aula de boa comunicação e domínio técnico de informações ao falar à mídia local, há poucos dias, sobre projetos de infraestrutura. Quantas pessoas, cujas vidas são diretamente impactadas por essa área, repercutiram suas palavras nas redes sociais? Desnecessário dizer que muito poucas o fizeram, o que em boa parte se explica — penso eu — pelo fato de o discurso do secretário ser técnico e não polêmico. No episódio da Acid, nada tenho contra o direito da mídia e dos contribuintes de discutir a adequação política e ética do vocabulário dos agentes públicos enquanto estes, em reunião tornada pública, discutem questões públicas. Mas em se tratando, como se trata neste caso, de um tema de relevância social, penso ser desejável que as opiniões abordem também o tópico que motivou toda a discussão.

Trata-se de saber, sob este aspecto, qual é o nível de interesse público das medidas solicitadas pela Acid ao Executivo, que vão além, aliás, da prorrogação do prazo de vencimento do IPTU e incluem um pacote de benesses também solicitadas pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL). Neste pacote, as duas entidades pedem que o contribuinte divinopolitano tenha condições especiais (redução de juros e de correção e parcelamento) para a quitação do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), de taxas e de outras obrigações vencidas para com a fazenda municipal. Pedem, ainda, que certidões negativas ou positivas com efeito de negativas expedidas pela Prefeitura tenham seu prazo de vigência extendido por seis meses e que pelo mesmo prazo se suspenda a exigência de que pessoas físicas e jurídicas estejam em dia com o município para com realizar transações comerciais com a administração municipal.

Quantas manifestações repercutidas via internet perguntaram qual seria o impacto que o pacote de benefícios solicitado pela Acid e a CDL teria sobre a arrecadação municipal? Quantas pelo menos lançaram ao ar uma pergunta sobre a compatibilidade desse impacto com a execução de obras e serviços e com o custeio de despesas administrativas integrantes do processo orçamentário de 2021, cujas normas reguladoras (Lei de Diretrizes e Lei Orçamentária) foram aprovadas no ano anterior? Aliás, quantas dessas manifestações questionaram o fato de os benefícios, embora solicitados em nome do grupo de empreendedores prejudicados pela pandemia, terem sido pleiteados indistintamente para todos os contribuintes? E nem entro aqui na questão da legalidade dos pedidos feitos pela Acid e a CDL, que são, no mínimo, polêmicos, como mostram recentes decisões contrárias à dilatação do prazo do IPTU tomadas pelas câmaras de direito público do Tribunal de Justiça de São Paulo ao analisar processos ajuizados por contribuintes. Naturalmente, pode-se argumentar a favor do pacote de medidas da Acid e da CDL lembrando que Belo Horizonte e alguns municípios já o implementaram, mas isso não prova nem que tais medidas estão ao abrigo de futuros problemas jurídicos — sérios problemas, aliás, tendo em vista a severidade da Lei de Responsabilidade Fiscal — nem que são financeiramente viáveis, hoje, em Divinópolis. Afinal, cada caso é um caso.

Todos esses questionamentos, embora não tenham tanto apelo popular quanto a discussão do vocabulário politicamente correto, são de inegável interesse público, pois implicam os recursos disponíveis no erário, estes mesmos recursos que custeiam obras, serviços e despesas administrativas imprescindíveis para manter a administração do município girando. Apesar desse interesse, não vi até aqui qualquer um desses questionamentos discutido de modo claro e abrangente em manifestações feitas na internet ou fora dela. E assim, dos projetos à polêmica, vai se limitando o alcance do debate político.

Da eleição à gestão

Quanto à administração municipal, o episódio da Acid mostra dois aspectos políticos sobre o prefeito Gleidson que o crescimento da polêmica não deixou que fossem discutidos até agora de modo adequado. De um lado, o caso indica que Gleidson, novato na vida pública, está amadurecendo na percepção da amplitude do cargo que ocupa. Eleito com sólida base de apoio entre empreendedores, sobretudo dos setores de serviços e comércio, do qual é egresso, o prefeito vem se esforçando por construir pontes que liguem seu governo aos empresários, sobretudo por meio da elaboração de uma política de desenvolvimento econômico. A ligação, conforme se sabe, tem tido seus momentos de fricção. Assim, por exemplo, em janeiro, à época da decretação de fechamento de serviços não essenciais por medida de combate à covid-19, Gleidson foi ostensivamente pressionado por empreendedores locais. Não faltou, naturalmente, quem sustentasse nas esquinas políticas da cidade que estaria em curso uma “colonização” do atual governo municipal pelos interesses de empresários. Se havia tal suposição quanto ao prefeito, ela se dissipou durante sua conversa com a presidente da Acid. Deixando de lado a discussão do caráter politicamente correto ou não de seu vocabulário, aspecto de que não me ocupo aqui, como deixei claro, o que se viu no curto trecho do diálogo mostrado em vídeo foi um administrador consciente de que não é possível governar prioritariamente para o segmento de que veio, pois isso implicaria medidas capazes de perturbar o bom andamento da administração ao invés de protegê-la.

De outro lado, o caso Acid mostra que, além de tentar governar para a totalidade dos cidadãos e cidadãs divinopolitanas, Gleidson está assimilando a inflexível lógica administrativa baseada em receita e despesa previstas em um orçamento cuja condução pode levar rapidamente tanto às realizações que a sociedade espera quanto ao caos administrativo. Foi o que o prefeito quis dizer, de modo claro, quando, no vídeo da conversa que manteve em seu gabinete com a presidente da Acid, apontou as dificuldades de se sentar “naquela cadeira”. Múltiplas, essas dificuldades incluem — para nos limitarmos ao pacote de benefícios pleiteado pela Acid — o fato de que o lançamento do IPTU 2021 já estava sendo feito quando da solicitação de prorrogação de prazo, conforme informação do setor fazendário, ou o fato de que a pandemia, atingindo tanto contribuintes quanto o governo municipal, resultou no ano passado em inadimplência da ordem de 23,7% no recolhimento do IPTU, principal componente da receita tributária própria do município. A conta, já tornada pública, é a seguinte: dos R$42 milhões previstos, pouco mais de R$32 milhões entraram de fato nos cofres. Desnecessário dizer que isso já apertou a execução do orçamento e, no limite, esticou a corda das políticas públicas.

Quanto às outras medidas solicitadas no pacote da Acid/CDL, embora não pareçam ilegais à primeira vista, há no mínimo cabimento para discutir inconveniências políticas como o fato de que o parcelamento, segundo dados levantados pelo próprio setor fazendário do município com base nos últimos exercícios, não é integralmente cumprido por cerca de 70% dos contribuintes que o solicitam. Já a dilatação de prazos de validade de certidões da Prefeitura constitui, segundo mais de uma interpretação jurídica, uma forma de moratória, que requer lei autorizativa. São muitas as questões ainda possíveis de levantar, e aqui ficam apenas algumas delas. Penso serem suficientes, porém, para mostrar que aquilo que está em jogo decididamente não é pouco. Naturalmente, a Acid e a CDL têm pleno direito de solicitar as medidas listadas em seu pacote e de contra-argumentar quanto à sua legalidade, conveniência e oportunidade. Na democracia, o debate de interesse público deve estar sempre aberto. Cabe ao prefeito, porém, analisar todos os aspectos envolvidos e outros decorrentes de impactos possíveis em diferentes cenários racionalmente projetados.

Tenho discordado de maneira contumaz de algumas medidas administrativas tomadas por Gleidson. O senso de justiça e o princípio de honestidade me obrigam, entretanto, a reconhecer que, no caso da Acid, ele não errou ao levantar aspectos de natureza legal e orçamentária envolvidos nas solicitações da entidade: seu raciocínio migrou do clima de eleição, que ficou no passado, ao espírito de gestão, que representa o presente. De fato, se o prefeito ignorasse esses aspectos e não os colocasse na mesa durante sua conversa com a presidente da Acid, seria por certo o caso de perguntar se ele está louco.

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