A honra, o grito e a humilhação

Domingos Sávio Calixto 

Quando o Brasil foi invadido e tomado pelos portugueses em abril de 1500 não havia códigos em vigor, mas “ordenações” do Reino. Ordenações eram conjuntos de normas diversas, reunidas e compiladas formando um grande corpo de leis que recebiam o apelido do monarca que as determinava. O Brasil se submeteu a três ordenações sucessivamente: Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, sendo que estas últimas vigoraram no país até 1917, ou seja, quase um século após a independência.

Ora, conforme as ordenações, quando uma mulher fosse tomada para o sexo mediante violência (não se falava em estupro), deveria ela proceder da seguinte maneira, segundo a lei: 

Se alguma mulher forçarem em povoado, que deva fazer querela em esta guisa, dando grandes vozes, e dizendo, VEDES QUE ME FAZEM, indo por três ruas; e se o assim o fizer, a querela seja valedoura: e deve nomear o que a forçou por seu nome”.

Isto significa que a mulher violentada deveria imediatamente passar por três ruas gritando e tornando público que havia sido vítima do abuso, inclusive citando nominalmente o autor, não importando quão lesada estivesse. O grito em público era uma exigência – interferência religiosa ‒ não só para o flagrante como também para não prejudicar a honra dos “bons homens” com uma eventual dissimulação feminina (...).

Pois bem. Atualmente há uma (outra) norma que guarda evidentes semelhanças com o procedimento daquela época. Trata-se da Portaria 2.282, de 27 de Agosto de 2020 do Ministério da Saúde que dispõe sobre o “Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez” nos casos de estupro.

(É sabido que a lei brasileira autoriza o aborto praticado por médico em casos de estupro. Trata-se de um direito subjetivo da vítima. Entretanto, em pleno século XXI, a estuprada que resultar grávida terá que dar outros gritos em “quatro ruas” para fazer valer o direito que a lei lhe confere.)

A diferença é que a tal portaria substitui os gritos nas três ruas por quatro imposições faseológicas, ou seja, a vítima terá que passar por quatro fases – vias constrangedoras ‒ desde sua chegada ao hospital até o efetivo procedimento de interrupção da gravidez violenta.

Assim que a vítima chega à unidade médica ou hospitalar se faz obrigatória a notificação à autoridade policial, sendo que os profissionais da área da saúde deverão preservar as possíveis evidências do crime de estupro, tal qual uma unidade policial e todas as fases do procedimento deverão ser registradas no formato de “termos”, praticamente nos moldes de um inquérito policial. 

Assim, na primeira rua, ou melhor, na primeira fase haverá um relato circunstanciado do evento realizado pela gestante perante duas testemunhas (profissionais de saúde em serviço). A segunda fase se dará com uma série detalhada de exames médicos, desde ginecológicos até ultrassonográficos para emissão do “Termo de Aprovação de Procedimento de Gravidez”, assinada por uma equipe especializada, no qual conterá minucioso parecer técnico.

A terceira fase corresponderá ao “Termo de Responsabilidade” assinado pela vítima, a qual será admoestada com uma série de advertências sobre crimes de falsidade. Finalmente o quarto grito, ou melhor, a quarta fase é aquela na qual a vítima terá que assinar mais um documento, o “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, permitindo o procedimento, não sem antes ter sido levada ao sofrimento de ter visualizado o feto ou embrião por meio de ultrassonografia.

Enfim, um ritual humilhante com o claro propósito de fazer a vítima desistir do seu próprio direito. Claro que se trata de uma interferência religiosa na dignidade da vítima e não é difícil deduzir de qual dos atuais ministérios saiu o “lobby” para que tal barbaridade fosse editada. Atualmente e bem como na época das ordenações, o estupro é o que menos importa.

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