146, Maria Carmen de Jesus

Leila Rodrigues

Todo dia ela acorda como de costume, com o barulho do ônibus que passa na sua rua antes do dia amanhecer. Mas nem por isso deixa de se benzer e agradecer por ter amanhecido. No automático, se prepara para o seu dia, nem se vê direito no espelho. Para quê? Já se conhece, já sabe como está e não gosta muito do que vê.

Faz seu café de sempre e o toma encostada na janela, este é outro ritual que ela segue sem se dar conta dele. Da janela, ela enxerga o sol batendo na serra, ouve as maritacas em reunião matinal e acompanha o pé de limão que, nesta época do ano, começa a florir. 

Ela não tem opção, tem trabalho para fazer, tem que ir. Cada dia é só mais um dia como outro qualquer. Sem glamour, sem música de fundo, sem ninguém interessado em curtir seus fatos, ela vai mesmo assim e distribui seus “bom dia” com verdade e com sorriso. Ela pode até achar que não carrega nenhum encanto… Mas ela os distribui.

Ela trabalha, cuida, limpa, arruma, cozinha, serve, limpa de novo, limpa o que ninguém gosta de limpar, ouve a mulher reclamar do marido, ouve um irmão reclamar do outro irmão e ouve os cães reclamarem atenção. Enquanto isso, ela limpa. Limpa, cuida, esfrega e vai levando a sujeira para algum lugar que ninguém veja.

Ela sabe que precisa se cuidar, que precisa se consultar, que precisa parar um pouco. Mas na sua dupla ou tripla jornada diária, não tem espaço para ela mesma. Então, ela usa o pouco tempo que lhe resta e manda mensagens para a mãe que mora longe, para o filho que mora mais longe ainda e  reza para que todos fiquem bem.

 O dia passa e não deu tempo do filtro solar, o dia passa e ela nem viu o tempo passar. O dia passa e ela só pensa na mala de roupa que ficou sem passar. Tanta gente usufrui dos seus serviços e muito poucos a percebem de fato. Ela é invisível a muitos olhos. Talvez até aos seus próprios olhos. 

 

O que ela não percebe é a falta que faz! A falta que faz o seu bom dia no caminho e a falta que os cães sentem dela quando não aparece no trabalho. A falta que faz a sua comida, a roupa lavada, a janta na mesa e o seu sorriso sereno disposto a ouvir quem quisesse falar.

Agora, sim, ela ficou visível. Todos sentem a sua falta. Ela ocupa o leito 146 na ala de contaminados pela covid-19 daquela cidade. Ela é só mais uma! Mais uma que deixa muitos sem ter o que falar.

 

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