‘Empresário’ de si mesmo, sócio de nada

Domingos Sávio Calixto - CREPÚSCULO DA LEI – LXXXVIII

As palavras têm vida própria – algumas levam até uma vida secreta – e, por conta disso, elas nascem, vivem e morrem. Qualquer um que já leu “1948”, George Orwell, possui alguma compreensão do que a novilíngua é capaz, ou mesmo no livro “LARANJA MECÂNICA”, Anthony Burgess, e seu dicionário Nadsat também sabe.

Sob este aspecto, duas palavras foram capturadas e estão condenadas ao limbo gramatical do vernáculo pagão do cotidiano: trabalho e trabalhador. Estão devidamente proscritas, amaldiçoadas e fadadas ao degredo para a terra das línguas silenciadas.

Trabalho e trabalhador são palavras condenadas pelo grande barão Von Neo Liber Halism, senhor supremo das mentes e vidas do grande feudo contemporâneo de matrix capitalismo financeiro. Ele determina o que pode ser dito ou não.

A palavra trabalho é uma ofensa ao grande barão, posto que arrasta pensamentos de valor à mercadoria – outra santidade muito requisitada – e na medida em que (oh, mais valia nossa!) o trabalho é oneroso ao bom andamento do grande feudo, e lá nas portas de sua entrada já exige-se ao entrar: seja empreendedor de qualquer coisa!

Ninguém mais está autorizado a dizer-se trabalhador. É ofensivo e humilhante e ninguém vai querer desagradar ao barão Neo Leber Halism, afinal, ele tudo sabe, tudo vê e a todos capitaliza com sua proteção: bem aventurados os miseráveis, pois ricas são suas almas e delas é o feliz reino do grande feudo.

Todos no feudo são felizes, pois não são trabalhadores, graças ao bispo Milton Friedman – “Não existe almoço de graça!” – mas, sim, empreendedores e colaboradores. Exatamente, eis o recital da moda: chamar-se “colaborador”, “empreendedor” ou “empresário” de si mesmo, até sócios de nada. Que feudo feliz!

Qualquer empreendedor, colaborador ou empresário de si mesmo deve ter algum diploma. Isto é muito importante, mas importante mesmo é que ele esteja pagando seu próprio seguro saúde e sua própria previdência privada. Oh, como o feudo fica feliz, como todos ficam felizes com seus sócios de nada!

É lindo ver os empreendedores, sócios de nada e os empresários de si mesmos pelas ruas, nas esquinas, nas praças e nos sinais de trânsito. Todos vendendo qualquer coisa como chicletes, panos de prato, picolés, meias ou máscaras contra vírus que todos duvidam.

Alguns deles se posicionam até nas praças e se empreendem em qualquer coisa também, frutas, canetas, óculos, relógios. Vendem até uma “palavra” de conforto. Realmente o feudo agradece muito aos (seus) empresários de si mesmo que tanto colaboram em todos os empreendimentos comerciais, industriais ou de prestação de serviço como se sócios fossem.

Era muito ofensivo ser vinculado ao trabalho, com carteira e tudo. O feudo não gostava. Pior ainda era ser chamado de trabalhador. Tinha até um partido que assim o fazia, mas tudo passou felizmente e graças ao bondoso barão Neo Liberalism. Tão bom que há casos de o colaborador do mês receber o grandioso prêmio de um quilo de arroz. Com casca. Viva!

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